HIGIENE ALIMENTAR: O CONCEITO ESTENDIDO E SUA INTERAÇÃO COM A SEGURANÇA

A história das civilizações parece viver numa espiral sem fim onde, ciclicamente, surgem e  ressurgem assuntos, pensamentos e, por consequência, problemas que parecem novidades e que são, verdadeiramente, repetições travestidas ao longo do tempo. A segurança de alimentos não é diferente, mostrando, periodicamente, a necessidade e precariedade da atenção prestada a ela, quando se correlaciona diretamente com a higiene alimentar. Como entender, afinal, tais conceitos e como eles se inserem no cotidiano das empresas, especificamente as de alimentos?

Higiene Alimentar é uma temática muito abordada e presente em nosso dia-a-dia, mesmo que não percebamos, e isso se justifica por um fato – o conceito vai muito além de nossa compreensão usual. Comumente, entende-se  higiene  como parte da medicina que busca a higidez, ou seja, condições ou hábitos que levam à manutenção da saúde e previnem doenças em todos os sentidos – fisiológico, metabólico, motor, psicológico… Neste contexto, estão contidos o bem-estar, a limpeza, o asseio. Então, ao falarmos de higiene alimentar não é somente uma questão de inocuidade do alimento, mas vai muito além, está relacionada ao que modernamente entendemos como Saúde Única, ou seja, a saúde considerada num plano abrangente e completo, que alberga a saúde humana, a saúde animal e a saúde ambiental. 

E, ao contrário do que se possa imaginar, é um conceito que há muito se anseia, que há muito se discute, logicamente com outras vestimentas, mas cujo significado evoluiu e hoje está diante de nós, a exigir soluções urgentes. Tivemos certeza deste fato ao encontrar entre as relíquias da biblioteca do Prof. Panetta, os dois volumes de Hygiene Alimentar, publicados em 1908, de autoria do médico Eduardo de Magalhães, numa época em que já se percebia o valor da boa alimentação como fator de prevenção de doenças e manutenção da saúde, ou seja, em que a alimentação adequada já era considerada estratégica para a higiene e saúde pública. Confessamos que nossa rinite e sinusite não apreciaram muito, porém o cérebro agradeceu a leitura do  conhecimento de 113 anos contidos nas mais de 400 páginas já amareladas pelo tempo. Leiam, a seguir, a “coincidência” de conceitos, em trecho da obra citada, no qual mantivemos a gramática original.

“A nossa existência, ponderam os hygienistas modernos de maior nomeada, é uma permuta perene de calórico com os objectos exteriores, e uma incessante, tendendo para nos subtrahir o calor ou accumulal-o no nosso interior: – as influencias atmosféricas e os alimentos modificam o calor animal, e o regular funcionamento orgânico tende a conserval-o, e com tanto mais energia quanto mais poderosas forem as forças vitaes. O clima do Brazil, sejam quaes forem os defeitos que se lhe atribuam, é essencialmente econômico e protector. Os habitantes mais necessitados são os mais beneficiados por ele. NÃO ATTRIBUAMOS SÓ AO CLIMA AQUILLO QUE NA MAIOR PARTE É DEVIDO A NÓS MESMOS.

De todos os modificadores do homem e dos povos nenhum há tão poderoso e capaz de assegurar-lhes a prosperidade como os alimentos, por serem os fornecedores ao organismo dos meios de acção, de actividade, de trabalho, de energia e de resistência a tudo, aos labores da vida e ás causas das moléstias. Da alimentação, pois, abundante ou insufficiente, reparadora ou não, apropriada ou não ás exigências do nosso corpo, depende a nossa sorte: ahi está a origem do bem e do mal, a garantia da saúde ou germen da moléstia, o principio da felicidade ou a fonte da desgraça.

E’, portanto, a alimentação a base da saúde, da felicidade. Payen, um dos mestres em hygiene alimentar, abre o seu apreciado livro – Substancias alimentares – conceituando que, PARA SER SALUTAR, A ALIMENTAÇÃO HÁ DE SER COMPLETA. Entende-se por alimentação completa a que suppre o organismo com os meios necessários ao seu funcionamento e á manutenção e reparação dos tecidos.”

O trecho, assim como a obra, deixa latente a questão de o hábito de se alimentar com qualidade está diretamente ligado a saúde pública. Porém, somente sete a oito décadas após, passamos a discutir a inclusão do conceito de Segurança Alimentar – garantir com que cada indivíduo tenha acesso minimamente a alimentos que garantam sua higidez, esteja de acordo com suas crenças e princípios, através de políticas públicas que garanta a acessibilidade e educação ao lidar com o alimento ao longo da cadeia produtiva. Isso inclui fazer com que os alimentos cheguem acessíveis e aptos a serem consumidos de forma segura ao cidadão, além de educação sanitária.

A Segurança de Alimentos está contida no conceito e segundo a norma ISO 22000:2018 é a “garantia de que o alimento não causará efeitos adversos à saúde do consumidor quando for preparado e/ou consumido de acordo com o uso pretendido”. Portanto não podemos utiliza-los como sinônimos. A segurança de alimentos é essencial para garantia da Higiene Alimentar, que é um conceito mais abrangente.

Mas será que a higiene alimentar impacta tanto a sociedade? Os criacionistas não gostarão desse fato, desde que entendem o surgimento do homem como uma “aparição”, num passe de mágica. Aqui, faz-se necessário desmistificarmos um fato – os hominídeos inicialmente não eram propriamente caçadores onívoros, mas carniceiros por coletar restos da caça de outras espécies predadoras. Um dos pontos chave para a evolução de nossa espécie foi o controle do fogo e aplicação da cocção dos alimentos por dois motivos – o fogo aumenta a digestibilidade de nutrientes dos alimentos, em especial carnes; a aplicação da cocção aumentou drasticamente a segurança do alimento. Esses dois fatores em conjunto aumentaram a segurança do alimento consumido e possibilitou desenvolvimento do telencéfalo e complexidade de seus giros.

Ao longo da história das civilizações processamentos foram desenvolvidos e aplicados aos alimentos. Porém, a falta de cuidado com alimentos e saneamento básico foi protagonista em diversos momentos de nossa história. Na Idade Média, micotoxinas foram causadoras de diversos episódios históricos – eventualmente levando pessoas a fogueira na inquisição por conta das alucinações causadas. Também, era mais seguro o consumo de cerveja e vinho do que água, ao ponto de integrarem a dieta inclusive de crianças.

Hoje, quando uma criança de seis anos tem mais informação que um rei na Idade Média e temos diversas tecnologias para garantir a segurança de alimentos e higiene alimentar como estamos? A FAO projeta que até 2050 a população mundial irá dobrar te tamanho, chegando a 9,6 bilhões de pessoas. Parece muito distante, certo? Então vamos “engrossar o caldo” de informações para refletirmos a respeito.

Um dos piores inimigos da soberania nacional brasileira é o Custo Brasil – todos aqueles fatores que tornam menos eficiente e competitivo produzir em nosso país, de burocracia e carga tributária excessiva a corrupção, e claro que infraestrutura está inclusa. Aliás, como ela está? No mundo, um terço do que se produz de alimentos é perdido, sendo que metade acontece antes de chegar ao ponto de venda.

A pandemia de COVID-19 colocou a prova nossa infraestrutura de saúde pública. Falando somente em saneamento básico, assim Matsuda Vivan define a situação, num artigo de 2015:  “Saneamento básico, enquanto direito fundamental, é DIREITO HUMANO. 36 milhões de brasileiros não dispõem de água tratada, só 48% da população tem esgoto coletado, sendo menos de 40% tratado; na região norte é menos de 10%. Somente sete capitais brasileiras possuem mais de 80% dos domicílios conectados à rede de coleta de dejetos, enquanto outras como Belém, Macapá, Porto Velho e Manaus estão abaixo de 10%”. Pois bem, quais as principais ações para evitar a COVID? Higiene pessoal. E quais as primeiras capitais a decretarem calamidade sanitária? É só ligar os pontos …

O Sistema Único de Saúde – SUS vai além de atendimento ambulatorial, é todo um sistema com escopo preventivo. O serviço de vigilância sanitária, assim como serviço de inspeção (que apesar de integrar ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) são precarizados e marginalizados institucionalmente há tempos, o que impacta em falta de recursos e capacitação adequadas para realização de suas atividades. Para ajudar, pouco iniciativa pública e privada atuam de forma sinérgica e em par de parceria.

Mas, por que tantas voltas? Para mostrar a miríade de vieses e impactos que a falta de políticas públicas causa, o que volta a questão da higiene alimentar.

O saneamento básico incipiente causa prejuízos inúmeros a sociedade. Impede não só o eficiente combate a COVID, mas a outras patologias erroneamente imputadas a animais, como a cisticercose, toxoplasmose, dentre outras. A água é utilizada para higiene pessoal e preparo de alimentos.  Ainda, utilizamos em nossa alimentação espécies oriundas do meio aquático. Qual o tamanho do prejuízo que um afastamento por doença dessa origem tem? Dias de afastamento do funcionário, uso do atendimento médico, fármacos, sobrecarga do sistema de produção de alimentos se for um manipulador de alimentos.

À infraestrutura deficiente se junta a educação enfraquecida, quase inexistente do ponto de vista sanitário. Em que isso impacta? Quantos fazem compras sem cuidados com os alimentos? Largam pelos corredores, colocam as mãos, deixam fora de refrigeração em carro ou reuniões com amigos. Esse custo volta para nós, consumidores. Sem aprofundar, mas e a relação entre produtos caseiros (não artesanais como se diz, afinal artesanal é algo feito com matéria prima de altíssima qualidade, por um artesão altamente qualificado, o que termina em um produto único de qualidade inquestionável) sem inspeção e o risco que oferecem a saúde pública? Abate clandestino com comércio de “carne quente/verde”, muitas vezes institucionalizado por abatedouros municipais sem condições alguma de funcionamento.  

A ausência do poder público traz uma fatura cada vez mais alta para nós, independente de bandeira política. O custo Brasil se torna cada mais insustentável e impagável a cada gestão. Não são os programas de autocontrole que evitarão a bancarrota da higiene alimentar, da segurança de alimentos. Aliás, ao mercado externo se cumpre sob pena de não vender, mas o mercado interno fica como? Cada vez menos é uma questão dentre essas, tampouco de soberania, mas sim de sobrevivência nacional.

A importância desses tópicos? Todos novos… fala-se a mesma coisa há décadas e sempre patinamos. Se estamos à beira do precipício hoje não sabemos o que acontecerá antes: se cairemos no mesmo ou se a beira vai colapsar e cairemos da mesma forma. São essenciais o desenvolvimento de infraestrutura; assegurar um serviço público que tenha condições de garantir alimento seguro, com os setores público e privado trabalhando em pé de parceria; Que a parte legal seja condizente e sinérgico com a realidade e garanta o cumprimento das normas; garantir a educação sanitária da população.  

Higiene Alimentar não é somente uma questão de alimento bonito e saudável, mas base para a saúde individual e populacional, para a evolução econômica, para a evolução da sociedade, para a redução da desigualdade e, sobretudo, para a soberania nacional. Precisamos urgentemente levar a sério a nossa atual realidade: somos uma potência alimentar como produtores e exportadores de alimentos, porém é necessário olhar para dentro do nosso País: precisamos ser uma potência alimentar para o povo brasileiro. 

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André Luiz Assi

Editor Adjunto e Consultor Técnico em Revista Higiene Alimentar
Médico Veterinário, graduado pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo – USP. Mestre em Ciências pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo – USP. MBA em Marketing e Vendas nas Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU. Professor no curso de graduação de medicina veterinária nas Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU e em cursos de pós graduação e especialização. Auditor líder FSSC 22000 (IRCA). Consultor técnico e editor adjunto da Revista Higiene Alimentar.

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