Bem-estar em animais de produção.

Os conceitos envolvidos na ciência do bem-estar são inúmeros. Pertinente tanto aos seres humanos quanto aos animais, sua abrangência envolve de forma direta ou não, questões relacionadas por exemplo, às necessidades, liberdades, sofrimento, sentimento, medo, estresse e saúde, dentre outros. Na sua referência aos animais, temos ainda o envolvimento de inúmeras espécies nas suas diferentes formas de criação, como os animais silvestres, os de produção, de estimação, de coleção, de experimentação, de exposição, seja em zoológicos ou feiras agropecuárias, e até, os de diversão, muitas vezes relacionados às práticas “esportivas”.

Tendo por definição, segundo o dicionário Aurélio, o “estado de perfeita satisfação física ou moral, conforto”, é de extrema dificuldade a sua avaliação no âmbito animal, por tratar de características subjetivas e intrínsecas aos próprios animais, de complexo entendimento e de difícil consenso. Sua aplicação prática é baseada no atendimento às cinco liberdades que, de forma geral, envolvem o medo, a dor, a fome, o desconforto e a restrição dos comportamentos naturais, e tem sido alvo de intensas discussões e considerações.

Diante do desafio urgente de se produzir alimentos em maiores quantidades e dentro dos mais altos padrões de segurança alimentar, haja vista as projeções de crescimento da população mundial, ganha força a tendência da produção primária de forma intensiva onde, por mais que se respeitem as questões pertinentes aos animais, as implicações econômicas incitam as tendências de restrição das áreas de produção buscando-se maiores densidades por espaço, além da busca dos mais altos índices de desempenho, seja por meio de recursos de melhoramento genético ou nutricionais, os quais, através da nutrição animal de precisão, por exemplo, potencializam os índices zootécnicos relacionados a ganho de peso, dentre muitos outros.

Em contrapartida, grandes empresas consumidoras de matéria-prima de origem animal colocam restrições à aquisição de produtos oriundos de sistemas de produção que, de alguma forma, ferem as questões relacionadas aos animais e sua forma livre de expressão de comportamentos. Na área de avicultura por exemplo, recentemente, a WAP, World Animal Protection, iniciou uma campanha global a fim de mobilizar grandes empresas de fast food (KFC, Burger King, Pizza Hut, Domino’s, Starbucks, Nando’s e Subway) para que não mais utilizem em seus cardá- pios carnes de aves procedentes de animais criados em gaiolas. Na suinocultura, mudanças radicais nos sistemas tradicionais de produção devem priorizar a gestação fora de gaiolas. Desde 2012, grandes empresas do setor alimentício – como McDonald’s, Subway e Burger King – se comprometeram publicamente a eliminar o uso de gaiolas de gestação em suas cadeias de fornecimento nos EUA. O confinamento em gaiolas de gestação já foi proibido em nove estados norte-americanos e em toda a União Europeia. Canadá, Nova Zelândia e a Austrália, também adotam ações para que o uso seja abolido.

Em se tratando de pecuária leiteira, questões envolvendo instalações e acomodações podem levar a sérios problemas de andadura e cascos nos animais, sendo estes, na opinião de muitos, um dos principais problemas de ausência de bem-estar. Há que se levar em conta, entretanto, ainda outros, como adaptação de raças europeias ao clima tropical, por conta do calor e, analisando-se variações sobre o tema, aspectos relacionados aos animais na busca de altas produções ou recordes expressivos. Ao considerarmos que uma vaca, para que segregue um litro de leite, necessita que circule pelo seu úbere cerca de 500 litros de sangue, devemos refletir e imaginar o funcionamento do coração e a atividade fisiológica de um animal que hoje detém o recorde mundial de produção de leite, beirando cerca de 116 Kg por dia. Neste caso, todo cuidado do mundo, porém com restrições de espaço e pastejo, ferindo o seu comportamento natural. Alimentos de qualidade, treinamento da mão de obra, instalações caras e modernas, repletas de recursos tecnológicos e cuidados sanitários não devem se caracterizar como ferramentas únicas para que os animais sejam levados às melhores condições de conforto e bem-estar.

Aspectos envolvendo transporte a abate humanitário dos animais também vem sendo amplamente debatidos. A WSPA, com o apoio do Ministério da Agricultura, publicou detalhado material a este respeito e demonstra nele, o quanto os tradicionais sistemas de produção ainda se encontram fora das condições mínimas de aceitação da aplicação das práticas de bem-estar. O abate clandestino, bastante combatido, mas de ocorrência ainda relativamente comum no nosso país, também surge como ponto a ser seriamente considerado e mais ainda coibido, quando nos referimos ao tema em questão.

É evidente que é esta uma busca necessária e o caminho, longo e sinuoso, nada fácil de ser trilhado e de difícil entendimento, principalmente no que diz respeito à adequação de conceitos e à mão de obra envolvida. Porém, é um caminho de mão única, sem atalhos, sem retornos e sem conversões, seja para qual lado for. Não há limites de velocidade, mas há in- úmeros radares capazes de acusar a falta da eficácia da forma adotada.

Talvez, para muitos, novas alternativas devam ser consideradas. Notí- cia veiculada recentemente informa que na Tailândia, um dos maiores países consumidores de insetos do mundo, cerca de 20.000 fazendas os produzem, os processam e estão às vias de exportá-los. Sem dúvida, uma alternativa na produção de proteínas alimentares. Resta-nos apenas imaginar nossa cultura gastronômica associando gafanhotos e içás, por exemplo, aos fartos rodízios e pratos típicos de festas comemorativas.

Na busca do bem-estar animal, é forte a tendência de se “humanizar” os animais, buscando transformá- los em “entes familiares”, prática pelo menos questionável, uma vez pretender colocar emoções em patamares talvez muito acima da razão. Se o reverso dos conceitos fosse considerado, talvez nos causasse no mínimo escândalo e repúdio, a “animalização” dos entes humanos.

Num mundo onde a fome assola boa parte da população, num país onde a miséria atinge considerável fatia da sociedade, seja ela no aspecto financeiro ou da educação, talvez esforços maiores devessem ser destinados a ações em prol de um futuro cenário de mundo melhor, cujas mudanças somente poderão ser implementadas à medida que a distância entre o conhecimento e a aplicação deste sejam conciliadas. Portanto, há ainda muito a se aprender e evoluir, na aplicação e aperfeiçoamento de conceitos envolvidos nas práticas de bem-estar.

Clamemos, pois, à luz da Ciência. Nos traga ela o caminho, a clareza e o equilíbrio necessários, para que sejam os animais de produção trabalhados dentro dos mais nobres princípios de ética profissional, sem que sofrimento nenhum agrida suas condições de vida e bem-estar, mas que não se perca nos entremeios das emoções e afetos, a realidade sacramentada de serem animais de produção, seja de alimentos ou de divisas, mas de vital importância para os cenários nacional e mundial, na expectativa de um mundo mais “humano” e próspero.

Marcelo Arruda Nascimento

Editoria da Revista Higiene Alimentar Consultor em Produção Animal

ETEC Prof. Edson Galvão

Higiene Alimentar – Vol.30 – nº 262/263 – Novembro/Dezembro de 2016

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