Análise dados sobre fraudes e alertas de fraudes em alimentos noticiados pela Comissão Europeia em 2020 e suas comparações com as ocorrências de 2019

Marcus Vinicius Pereira de OLIVEIRA

Psicólogo organizacional, especialista gestão e cultura de segurança dos alimentos. Sócio-diretor da Liner Consultoria.

Caroline Santos TERRA

Engenheira de alimentos. Atua na Liner Consultoria.

Resumo

O controle sobre a mitigação de fraudes alimentares é tema recorrente entre as empresas do ramo, principalmente no âmbito de seus Sistemas de Gestão de Segurança dos Alimentos. Esta segunda compilação sobre as notícias publicadas e catalogadas pela EUROPEAN COMMISSION traz luz sobre o tema, pontuando possibilidades de tendências e formas de atuação para a atenuação dos números de casos de fraudes em alimentos a partir das comparações entre os períodos de 2019 e 2020.

A compilação de dados foi baseada em 229 ocorrências de fraudes e de alertas de fraudes noticiadas pela EUROPEAN COMMISSION no período de janeiro a dezembro de 2020, comparando-se os dados, quando aplicável, com o ano de 2019. Conforme ocorreu na edição de 2019, para a análise de dados foram adotadas classificações para grupos de alimentos envolvidos, para tipos de fraudes e para fraudes com avaliação de risco à segurança dos alimentos. Na comparação entre os períodos foi identificado o aumento de 44% das fraudes em alimentos e de 558% dos alertas de fraudes publicados, sendo o principal tipo de fraude associada aos alimentos a “Falsificação e mercado negro” com o aumento da ordem 342%, seguida pela “Diluição ou substituição” e “Alegação fraudulenta no rótulo”. Os principais grupos de alimentos envolvidos foram “Laticínios”, “Bebidas alcoólicas” e “Peixes e frutos do mar”, sendo que o grupo “Carnes vermelhas e seus derivados”, anteriormente em destaque, teve uma redução de ocorrências noticiadas, quando comparado com o período de 2019. Os principais países associados às publicações de fraudes e alertas de fraude continuam sendo Itália e Paquistão, sendo que ambos tiveram aumentos das ocorrências noticiadas em 2020 na ordem de 76% e 157%, respectivamente. O Brasil que, em 2019 figurou em sexto lugar entre os países com maiores índices de publicações sobre fraudes e alertas de fraudes, em 2020, apresentou-se em oitavo lugar de um total de 46 países e regiões associadas às notícias publicadas, com 6 ocorrências de alertas de fraude e uma ocorrência de fraude.

O ponto de maior atenção fica por conta do índice de fraudes com risco direto à segurança dos alimentos que aumentou em 336%, em 2020, quando comparado às publicações noticiadas e catalogadas pela EUROPEAN COMMISSION em 2019.

A compilação e análise de dados complementa suas narrativas incluindo os aspectos da Sindemia da COVID-19, de forma a instigar a necessidade de estudos futuros e correlações sobre as crises socioeconômicas mundiais e de restrição ao acesso de alimentos como fatores importantes a serem considerados nas motivações para a fraude em alimentos.

Palavras chaves: Food Fraud, Fraude Alimentar, Food Safety, Segurança dos Alimentos.

  1. Introdução

No ano em que toda a humanidade foi acometida pelo ciclo sindêmico originado pela COVID-19, as notificações de fraudes em alimentos e seus alertas não tiveram retrocessos. Uma incoerência? Talvez. O fato é que, neste segundo ano de compilação de dados, outros elementos entraram em cena, demonstrando a complexidade do que pode ser o controle efetivo sobre fraudes em alimentos, dadas as possibilidades do conhecimento técnico do agente fraudador, das ações efetivas dos órgãos fiscalizadores, capacidade técnica das empresas de alimentos em seus programas de food fraud, a diversidade de insumos e matérias-primas e a própria distribuição geográfica na produção de alimentos.

Partindo dos direcionamentos já efetuados para o levantamento anual em 2019, o critério para a busca de dados teve como base a catalogação oficial da EUROPEAN COMMISSION que descreve 229 registros de ocorrências publicadas pela imprensa no ano de 2020 nos diversos países do mundo. Como se trata da mesma fonte de dados consultada em 2019 e do mesmo critério para abordagem e classificação das fraudes em alimentos e de seus alertas, o que muda neste novo levantamento é a perspectiva de comparação[1] dos dados históricos do período de 2019 a 2020. Mesmo que possa conter, em alguns momentos, uma análise prematura, de forma empírica, é válida a avaliação de tendências das fraudes em alimentos e, a partir dos dados analisados, a possibilidade de proposições para a compreensão das fraudes em alimentos e respectivas formas de mitigação.

  1. Objetivos

Compilar dados sobre fraudes e alertas de fraudes noticiados e divulgar para as empresas de alimentos brasileiras, a fim de disponibilizar mais um instrumento de consulta e composição de busca de informações necessárias aos estudos e às análises de Food Fraud.

Identificar os principais grupos de alimentos propensos à situação de fraude e sinalizar possíveis tendências comparando-se os dados de 2019 e 2020;

Identificar, de forma preventiva, níveis de atenção para a propensão de fraudes por grupo de alimentos, por tipo de fraude, por risco à saúde do consumidor e seus reflexos frente à característica de negócios da cadeia de alimentos no Brasil, utilizando como ponto de partida o histórico de fraudes catalogadas pela EUROPEAN COMMISSION.

  1. Método

Este estudo sobre fraudes e alertas de fraudes noticiadas trata-se, exclusivamente, de levantamento de dados em fonte, previamente, conhecida, reconhecida e rastreável da EUROPEAN COMMISSION, sendo a base os meses de janeiro a dezembro de 2020, seguida pela comparação dos dados compilados do ano de 2019 pela Liner Consultoria. Todos os casos catalogados são de fontes noticiadas na mídia ou por organismos públicos dos diversos países.

A fim de melhorar a visualização e análise dos dados, neste estudo foram estabelecidos agrupamentos por tipo de produto, por tipo de fraude, diferenciação de fraudes e de alertas de fraudes, análise de risco direto ao consumidor e localidades de origem das fraudes, quando aplicável. Desta maneira, as notícias podem ser visualizadas na forma de dados, caracterizando, inclusive, eventuais tendências.

4. Levantamento dos dados

A coleta de dados foi a partir dos boletins publicados no ano de 2020 e são listados na tabela a seguir:

Tabela 1 – Boletins da EUROPEAN COMMISSION e seu respectivo link

Período

Link

Janeiro/2020

https://knowledge4policy.ec.europa.eu/publication/food-fraud-summary-january-2020_en

Fevereiro/2020

https://knowledge4policy.ec.europa.eu/publication/food-fraud-summary-february-2020_en

Março/2020

https://knowledge4policy.ec.europa.eu/publication/food-fraud-summary-march-2020_en

Abril/2020

https://knowledge4policy.ec.europa.eu/publication/food-fraud-summary-april-2020_en

Maio/2020

https://knowledge4policy.ec.europa.eu/publication/food-fraud-summary-may-2020_en

Junho/2020

https://knowledge4policy.ec.europa.eu/publication/food-fraud-summary-june-2020_en

Julho e agosto/2020

https://knowledge4policy.ec.europa.eu/publication/food-fraud-summary-july-august-2020_en

Setembro/2020

https://knowledge4policy.ec.europa.eu/publication/food-fraud-summary-september-2020_en

Outubro/2020

https://knowledge4policy.ec.europa.eu/publication/food-fraud-summary-october-2020_en

Novembro /2020

https://knowledge4policy.ec.europa.eu/publication/food-fraud-summary-november-2020_en

Dezembro/2020

https://knowledge4policy.ec.europa.eu/publication/food-fraud-summary-december-2020_en

Os boletins disponibilizados na internet foram avaliados e traduzidos. Para a transcrição foram abordados os seguintes pontos:

a) Data da notificação;

b) País de origem da notificação (quando aplicável ou disponível);

c) Classificação de grupos de produtos (estabelecido pela Liner Consultoria, mediante o histórico de 2019 e 2020);

    • Carnes vermelhas e seus derivados
    • Aves e seus derivados
    • Laticínios
    • Bebidas não alcoólicas
    • Bebidas alcoólicas
    • Conservas
    • Vegetais e frutas in natura ou semiprocessados
    • Molhos
    • Panificação
    • Biscoitos
    • Óleos vegetais
    • Condimentos ou especiarias
    • Ovos e seus derivados
    • Mel e seus derivados
    • Grãos, sementes e cereais
    • Alimentos em geral
    • Peixes e frutos do mar

d) Tipo de fraude (classificação ajustada pela Liner Consultoria com base na própria descrição da EUROPEAN COMMISSION);

      • Diluição ou substituição
      • Realce artificial não declarado
      • Uso de biocidas não aprovados, não declarados ou proibidos
      • Remoção de constituintes autênticos
      • Informação “falsa” do valor nutricional
      • Alegação fraudulenta no rótulo
      • Formulação falsa de um produto
      • Falsificações e mercado negro
      • Alerta para o risco ou combate à fraude

e) Descrição sucinta da notificação.

Ainda foram estabelecidas outras classificações extras em relação à identificação de fraude ou de alerta de fraude e da classificação da fraude, conforme prescrito pela FSSC 22000 (Guidance on Food Fraud Mitigation):

a) Riscos Diretos da Segurança de Alimentos: o consumidor é colocado em risco imediato;

b) Riscos Indiretos da Segurança de Alimentos: o consumidor é colocado em risco através da exposição a longo prazo;

c) Risco técnico de fraude alimentar: não há risco direto ou indireto da segurança do alimento, contudo quebra, no mínimo, a possibilidade do ciclo de rastreabilidade.

As descrições compiladas e catalogadas a partir dos boletins da EUROPEAN COMMISSION são disponibilizadas conforme estabelecido na Tabela 1 deste estudo.

5. Análise dos dados

Sob o ponto de vista da distribuição das fraudes e alertas noticiados, ao longo dos meses de 2020, foram catalogadas 229 ocorrências, sendo 79 alertas e 150 ocorrências de fraude. Observa-se um aumento superior a seis vezes o número de alertas em 2020 quando comparado com o número de alertas em 2019. Sobre as ocorrências de fraude, o aumento em relação ao ano de 2019 foi da ordem de 44%, conforme indicam as comparações numéricas da tabela 2 e destas distribuições apresentadas no Gráfico 1.

[1] Interessados na Compilação de dados sobre fraudes em alimentos de 2019 podem entrar em contato com o cursos@linerconsultoria.com.br para solicitações deste material.

Conforme os resultados da Tabela 3, os meses de outubro e novembro de 2020 destacam-se pelo maior número de ocorrências noticiadas, porém o destaque fica por conta do aumento dos alertas de fraude que representou 34% das ocorrências totais. Em 2019 este número de alertas de fraude representou 10% do número total de ocorrências, conforme a FOOD FRAUD EUROPEAN COMMISSION – Análise de dados de 2019 (OLIVEIRA e TERRA, 2020). Portanto, atenção para o alerta de fraudes pode ser importante para as avaliações futuras, uma vez que sinaliza uma tendência para as ações de prevenção em termos de saúde pública. Também, reflete o posicionamento de governos e autoridades públicas diante dos fatores econômicos e sociais decorrentes da Pandemia da COVID-19. A visualização destes dados pode ser complementada pelos Gráficos 2 e 3.

A análise é mais interessante quando se avaliam as ocorrências noticiadas versus os grupos de produtos associados a estas mesmas ocorrências. Neste caso, destacam-se notificações de apreensões genéricas, o que gerou a classificação inicial de alimentos em geral no ano de 2020, diferentemente do que ocorreu em 2019 onde era possível destacar com clareza, por exemplo, o grupo de carnes vermelhas e seus derivados. Observando-se os grupos específicos, em 2020, o destaque fica por conta dos agrupamentos de “Peixes e frutos do mar”, “Bebidas alcoólicas” e “Laticínios” com 41, 26 e 25 ocorrências, respectivamente.  Estes três agrupamentos foram responsáveis por 40% das ocorrências de fraudes ou de alertas de fraudes noticiados, conforme indica o Gráfico 4. Dos 17 agrupamentos de alimentos propostos, apenas os grupos de “Carnes vermelhas e seus derivados” e “Vegetais ou frutas in natura ou semiprocessadas” tiveram um número de ocorrências em 2019 maior que no ano de 2020.

Desconsiderando-se as notificações de alertas de fraude para uma análise exclusiva das situações de fraude, em si, a distribuição dos principais grupos de alimentos e bebidas tem como predominância “Alimentos em geral”, “Peixes e frutos do mar”, “Bebidas alcoólicas” e “Laticínios” com 25, 25, 25 e 22 ocorrências, conforme apresentado no Gráfico 5.

Sob o ponto de vista da caracterização das notícias sobre fraudes, parece ter sido clara a percepção que tempos de restrição econômica ou de acesso aos alimentos poderiam causar a ampliação das fraudes, portanto foram catalogadas 79 alertas de fraude em 2020 contra 12 alertas de fraude noticiados em 2019, o que significa uma ampliação em 558%. Esta perspectiva, em princípio, parece refletir, além do aumento real de notificações, no número de fraudes caracterizadas como falsificações, cujo aumento foi de 341%. Estes dados podem ser visualizados no Gráfico 6.

Observando-se a distribuição por tipo de fraude noticiadas e catalogadas pela EUROPEAN COMMISSION, os destaques ficam por conta dos alertas para o risco ou combate à fraude, falsificações e mercado negro, diluição ou substituição e alegação fraudulenta no rótulo com 34%, 23%, 23% e 17%, respectivamente, conforme o Gráfico 7.  Considerando-se os números de notificações, sem considerar os alertas, estes três tipos de fraude corresponderam a 95% das ocorrências. Em 2019, estes três tipos de fraudes, sem considerar os alertas, representaram 91% das ocorrências, o que pode ser uma tendência a ser estudada nos próximos anos e para o direcionamento de ações governamentais e de compliance.

A partir dos três principais tipos de fraudes predominantes no levantamento das notificações realizadas, verifica-se que para a “Falsificação e mercado negro” os principais agrupamentos de alimentos são: “Peixes e frutos do mar”, “Bebidas alcoólicas” e “Alimentos em geral”, conforme o Gráfico 9. No caso de fraudes por “Diluição ou substituição”, os principais grupos de alimentos associados são: “Laticínios”, “Bebidas alcoólicas” e “Condimentos e especiarias”, conforme pontuado no Gráfico 10. E para o tipo de fraude por “Alegação fraudulenta no rótulo”, os principais grupos de alimentos associados foram: “Alimentos em geral”, “Peixes e frutos do mar” e “Ovos e seus derivados”, conforme Gráfico 11. No caso desta análise, algumas possibilidades de tendências, conforme o histórico do período de 2019 a 2020, podem ser estudadas na direção da prevalência de fraudes associadas aos agrupamentos  “Bebidas alcoólicas” e “Peixes e frutos do mar”, principalmente nos casos de falsificação e de certificado de origem . Por outro lado, o tipo de fraude por “Diluição ou substituição” pode tender para os agrupamentos de “Laticínios” e de “Condimentos e especiarias”.

Na análise específica de avaliação das ocorrências catalogadas, sob o ponto de vista de segurança dos alimentos, verificou-se, pelo levantamento de dados, que houve alteração da predominância dos riscos à segurança dos alimentos associados às fraudes em relação ao período de 2019. Considerando-se os alertas de fraude, a maior parte está relacionada exclusivamente com a fraude econômica, 107 ocorrências ou o equivalente a 47% dos casos noticiados (Gráfico 12). Em 2019 o percentual de ocorrências de fraudes exclusivamente econômicas representou 65%. Retirando-se os alertas de fraude, o quadro, em 2020, tem uma relevância importante para caracterizar que 46% das ocorrências implicaram em risco direto à saúde do consumidor e 28% em riscos indiretos para o consumidor, conforme a classificação de riscos publicada no Guidance on Food Fraud Mitigation da Norma FSSC 22000 (ver Gráfico 13).

Dos 17 grupos de alimentos que foram especificados neste levantamento, 11 deles estão associados a algum tipo de fraude com risco direto à segurança dos alimentos, sendo os principais grupos “Laticínios” e “Bebidas alcoólicas”[1], conforme pode-se evidenciar através da Tabela 4 e no Gráfico 14, perfazendo 37% das ocorrências, sendo que não há alteração da gravidade do quadro quando analisado sem os alertas de fraude, conforme Tabela 5. Em relação às fraudes com riscos indiretos à segurança dos alimentos destacam-se os grupos de “Peixes e frutos do mar” e “Laticínios”, perfazendo 32% das ocorrências, conforme Tabela 4 e Gráfico 15.

Sob o ponto de vista das fraudes e alertas de fraudes noticiados sem risco à segurança dos alimentos, os principais grupos levantados foram “Peixes e frutos do mar” e “Bebidas alcoólicas”, perfazendo 33% do total de notícias. Contudo, para esta classificação, quando levantadas as fraudes dissociadas dos alertas de fraude, estes dois grupos passam a expressar uma diferença significativa, correspondendo a 51% dos casos, conforme explicitam as Tabelas 4 e 5.

 

[1]  Não foi citado o grupo “Alimentos em geral” devido à sua falta de especificidade.

Em relação às localidades[1], do total de 46 países e regiões indicadas nas notícias de fraudes e alertas de fraude, a Itália destacou-se com 24% das ocorrências, assim como ocorreu em 2019 com 26% das ocorrências.  Na sequência dos países com maiores ocorrências noticiadas vêm Paquistão, Índia, Espanha, Estados Unidos e Reino Unido. O Brasil figura no 8° lugar deste levantamento em 2020, com 7 ocorrências, uma a mais que em 2019, conforme a Tabela 6 e a indicação do Gráfico 20.

Em números absolutos, deve-se destacar o aumento das ocorrências de fraude e alerta de fraude noticiados. Em 100%, dos oito países ranqueados nesta amostra, houve aumento no número de casos noticiados. A variação do aumento do número de casos noticiados ficou entre 17% e 200%, conforme a Tabela 6. Estratificando-se estes números com o foco, exclusivamente, de fraude, somente no caso dos EUA houve redução nas ocorrências de fraudes noticiadas, conforme demonstra a Tabela 7. Por esta perspectiva o Brasil aparece ranqueado em quinto lugar entre os países com maior número de fraudes noticiadas.

[1]  Nesta estatística foram desconsideradas as situações em que territorialidade não fica claramente definida ou se torna muito ampla. Por exemplo: ONU, todos os países, world, mundo etc. Tais localidades não definidas representam 8,7% da base de dados noticiadas em 2020.

O aumento real das fraudes noticiadas parece reforçar o igual número no aumento dos alertas de fraude e abre espaço para uma posterior investigação com o caráter de averiguar se o contexto histórico da condição sindêmica[1] da COVID-19 tem relação direta com desvios de licitude, no caso, fraudes alimentares.

[1]  Para este estudo foi utilizado o termo “sindemia” para que se possa visualizar a situação dentro do contexto social, político, econômico e sanitário, concomitantemente, conforme estabelecido pelo antropólogo e médico americano Merrill Singer, da Universidade de Connecticut. O autor descreve como as epidemias podem se sobrepor umas às outras sob fatores sociais, ambientais e culturais propícios ao desenvolvimento de determinadas doenças, formando uma rede com vários fatores que se potencializam sinergicamente.

Dos 8 principais países em destaque, 73% das notificações são relacionadas a fraudes e 27% a alertas. Considerando-se somente as fraudes nestes 8 países, predominaram, em ordem decrescente, os seguintes tipos de ação: “Falsificações e mercado negro”, “Diluição ou substituição”, “Alegação fraudulenta no rótulo”, “Uso de biocidas não aprovados, não declarados ou proibidos”, “Formulação falsa de um produto” e “Realce artificial não declarado”, conforme apresentado no Gráfico 21, sendo que os detalhes podem ser complementados pela Tabela 8.

Sob o ponto de vista do Brasil, as 7 notificações se caracterizaram pelos seguintes tipos de fraudes: “Diluição ou substituição”, “Alegação fraudulenta no rótulo” e “Falsificações e mercado negro”, sendo bem semelhantes aos aspectos catalogados no ano de 2019. Contudo, a atenção também deve ser direcionada para as características das fraudes brasileiras, pois 43% destas fraudes se caracterizam por volumes grandes de alimentos envolvidos e com potencial de gerar danos diretos à saúde do consumidor, conforme os dados, a posteriori, demonstram.

Em relação aos principais grupos de alimentos envolvidos com as fraudes destacam-se “Peixes e frutos do mar”, “Laticínios” e “Bebidas alcoólicas” com 24, 18 e 16 ocorrências, respectivamente, conforme a Tabela 9. Em termos de principais alimentos envolvidos, exceto para o caso de “Carnes vermelhas e seus derivados”, o quadro se apresenta similar ao ano de 2019, podendo indicar possíveis tendências ou direcionamentos para identificar os grupos críticos de alimentos e as intensidades das ações específicas para a mitigação destas fraudes, dada a condição real e inequívoca do aumento de casos, não apenas no nível das notícias, mas, também de volumes[1] dos alimentos apreendidos no ano de 2020. Esta perspectiva de mapeamento de alimentos e de zoneamentos geográficos para a mitigação de fraudes são citados por FILIPE, 2019, em seu estudo de caso sobre “O TALHO NACIONAL”:

“Este problema da fraude alimentar não só é grande como está a aumentar, mostrando aos organismos reguladores que foram, de alguma forma, ultrapassados pela mudança de métodos de compra e abastecimento de alimentos.

Neste sentido, é importante que sejam desenvolvidas estratégias que sirvam de resposta quando a saúde pública é ameaçada. Assim é necessário que se conheça a partir de que ponto, um determinado produto pode constituir um risco para a saúde pública, considerando os tipos específicos de riscos que envolve. Só assim é possível reduzir as oportunidades de fraude alimentar”.

[1]  Este estudo é direcionado para as fraudes e alertas de fraudes, oficialmente, noticiados e que podem ser rastreados. Contudo, somente uma parte das notícias identificam volumes de alimentos relacionados com as fraudes. Por isso, esta análise quantitativa do volume de alimentos envolvidos com fraudes necessitaria de um estudo mais específico e com outras fontes de dados.

Por fim, é preciso observar a questão das fraudes em alimentos e seu grau de gravidade sob o ponto de vista de saúde pública, ou seja, seu potencial de danos à segurança dos alimentos, mediante esta ilicitude que, a princípio, é de caráter econômico.  Para isto, foi utilizado o critério de comparar os principais países ranqueados em 2020, com os seus respectivos números em 2019. Nesta comparação, para todas as classificações das fraudes, houve o aumento real de casos noticiados, sendo a menor diferença na ordem de 30% para as fraudes de risco técnico, ou seja de impacto exclusivamente econômico, e na ordem de 336% para as fraudes de risco direto à segurança dos alimentos. Os dados são demonstrados através do Gráfico 22 e pelos Gráficos 23 a 30 onde é possível comparar a evolução das fraudes nos países ranqueados neste estudo e seus respectivos níveis de ampliação das fraudes em aspectos da segurança dos alimentos.

No Brasil, as comparações entre 2019 e 2020 não indicam variações significativas como nos demais países ranqueados neste estudo. Contudo, os alertas de fraudes estabelecem, de forma clara, a percepção, no nível das autoridades públicas mundiais, para o agravamento da situação de fraudes em

Gráfico 22 – Evolução do número de fraudes noticiadas entre 2019 e 2020 pela EUROPEAN COMMISSION versus suas caracterizações no nível da segurança dos alimentos

alimentos. Ainda não é possível efetuar uma relação direta entre a situação da Sindemia da COVID-19 com o aumento dos casos de fraudes em alimentos noticiados pela EUROPEAN COMMISSION, no entanto, torna-se importante salientar que as atuais políticas públicas brasileiras reduziram as atividades de fiscalização do MAPA e da ANVISA, o que pode permitir a ampliação deste movimento de caráter criminal dos estabelecimentos associados à cadeia de produção, distribuição e comercialização de alimentos. Concomitantemente, no nível nacional, também existem e tramitam vários movimentos direcionados para a legalização de produtos artesanais ou com selos regionais que agregam valor específico paras os alimentos, sem uma igual intensidade no controle destes certificados de origem, sendo este mais um fator de análise a ser considerado, uma vez que as “Falsificações e mercado negro” tiveram números ampliados entre 2019 e 2020 em vários países. Por isso, faz-se necessário um olhar crítico sobre estes movimentos de fraudes, suas avaliações sob o ponto de vista da segurança dos alimentos, a partir dos dados explicitados pelos Gráficos 23 a 30.

Avaliando-se o risco à segurança dos alimentos versus os grupos de alimentos envolvidos, verificou-se os principais alimentos com risco direto à saúde dos consumidores ou com risco indireto à saúde dos consumidores foram: “Laticínios”, “Bebidas alcoólicas” e “Peixes e frutos do mar”, conforme os Gráficos 31 e 32.

6. Conclusões

Esta segunda temporada de compilação e análise de fraudes e alertas de fraudes em alimentos, a partir das notícias catalogadas pela EUROPEAN COMMISSION, trouxe pontos de reflexões interessantes que permitem aguçar perguntas para o direcionamento de perspectivas de atuações:

  • Existe uma tendência de grupos de alimentos sujeitos a fraudes? As tendências desta compilação confirmam os atuais direcionamentos governamentais?
  • A quem cabe o mérito das ações mais efetivas para a mitigação de fraudes? Governos ou empresas?
  • Situações que gerem restrições econômicas e sociais, simultaneamente, tais como a Sindemia da COVID-19, podem estimular o aumento de casos de fraudes em alimentos?

Seguir uma linha de indagação é uma alternativa para esta conclusão ou para as narrativas. Digo narrativas, pois as fraudes não são, em si, elementos técnicos, mas aspectos sociais dos desvios de conduta ética que possuem agravantes técnicos, logo, estão além do controle almejado pelos esquemas de certificação dos Sistemas de Gestão da Segurança dos Alimentos. Conforme Spin e Moyer (2011), apud Figueira (2018):

“… fraude pode ser definida como toda e qualquer intervenção em alimentos elaboradas em condições contrárias às especificações legais. Provocam prejuízos de ordem biológica e econômica para o consumidor, além de serem antiéticos e conflitarem com legislação”.

Desta forma, a tendência de diálogos da iniciativa privada sobre o tema com direcionamentos de ordem dos Sistema de Gestão da Segurança dos Alimentos (FSSC 22000, BRCGS e IFS)[1] e não como um espectro socioeconômico-cultural, pode não levar a atuações eficazes para a mitigação dos casos de fraudes, conforme o levantamento deste estudo. Portanto, a partir desta narrativa, a ideia é que as questões postas, nesta conclusão, tenham outros espaços para a consciência, atuações, medidas de controle e enquadramento do tema fraude em alimentos.

Com base nos dados noticiados pela EUROPEAN COMMISSION e, posteriormente compilados pela Liner Consultoria, verificou-se o aumento na ordem de 44% das fraudes em alimentos na comparação entre o período de 2019 e 2020 e um aumento de 558% sobre o número de alertas de fraudes. Sobre os 17 grupos de alimentos catalogados, 52,9% apresentaram aumento no número de fraudes e/ou alertas de fraudes noticiados, 29,5% diminuíram ou mantiveram suas ocorrências iguais a 2019 e para 17,6% dos grupos de alimentos não foram identificadas notícias, a eles, associadas. Em função da Sindemia da COVID-19 ter afetado principalmente o acesso a alimentos em várias partes do mundo, conforme apontado nos Estudos Avançados de SCHNEIDER, et all, 2020, OS EFEITOS DA PANDEMIA DA COVID-19 SOBRE O AGRONEGÓCIO E A ALIMENTAÇÃO, pode-se, incialmente, considerar que os aumentos de alertas de fraudes sejam justificados por este fator, ou seja, pelas oportunidades de ganhos econômicos, associadas à própria especulação de preços de alimentos, restrições de acesso aos alimentos e à redução das condições para a efetividade das fiscalizações pelos órgãos governamentais.

” Até o momento em que estamos escrevendo este artigo, não se verifica escassez de oferta de alimentos no Brasil. À primeira vista, poder-se-ia dizer que a pandemia não está afetando o setor alimentar. Não obstante, já foram registrados problemas de distribuição, escoamento da produção, logística de acesso e contaminações em unidades de processamento…

… As projeções do Banco Mundial (2020) indicam que os impactos da pandemia da Covid-19 vão reduzir em 5,2% o crescimento econômico global em 2020. Para as economias avançadas a projeção é de queda de 6,1% para os Estados Unidos da América, 9,1% para a Zona do Euro, e 6,1% para o Japão. Entre as economias emergentes a projeção é de retração de 6% para a Rússia e crescimento de 1% para a China. Para a América Latina como um todo o Banco Mundial projeta queda de 7,2%. Com relação ao comércio internacional, a Cepal (2020) estima queda de 17% no acumulado entre janeiro e maio de 2020, em relação ao mesmo período de 2019, e projeta para o ano de 2020 queda de 23% nas exportações da América Latina e Caribe, no valor comercializado. Essa redução reflete a queda das exportações para os Estados Unidos em 22,2%, para a União Europeia, em 14,3%, e para a própria região, em 23,9%” (SCHNEIDER, 2020).

Em relação ao aumento das fraudes reais de alimentos noticiadas, os dados não são suficientes para serem atribuídos à situação da COVID-19, pois exige maior análise histórica destes números e melhores critérios de medição, sendo que a tendência da ampliação de casos de fraudes em alimentos no mundo já havia sido pontuada pela União Europeia e pelos EUA, segundo SANTOS, 2017 e FILIPE, 2019, independentemente da Sindemia da COVID-19. Contudo, os dados encontrados sugerem estudos e averiguações das possíveis correlações entre crises que envolvem a restrição de acesso aos alimentos e o respectivo aumento dos casos de fraudes alimentares.

Outro ponto importante a ser considerado nesta compilação de dados é o seu papel de indicar tendências ou predominância de determinados grupos alimentos às fraudes. De acordo com os dados, “Peixes e frutos do mar”, “Bebidas alcoólicas” e “Laticínios” fazem parte do ranking dos principais grupos de alimentos que figuram nos casos noticiados de fraudes e alertas de fraudes nos anos de 2019 e de 2020. Este ranking demonstra a complexidade do assunto sob o ponto vista de tendências. Conforme cita SANTOS, 2017, as tendências sobre fraudes em alimentos não são conclusivas, mas servem como alertas. É o caso dos estudos finalizados em 2012 nos EUA onde concluíram que os principais alimentos alvo de práticas fraudulentas eram azeite, leite, mel e açafrão; grupos de alimentos que não condizem com os resultados noticiados em 2019 e 2020 pela EUROPEAN COMMISSION.

Devido ao grau de complexidade das fraudes, por se apresentarem dentro do campo dos desvios de conduta ética, torna-se clara a necessidade de uma igual complexidade de ações para sua mitigação, sendo fundamental a atuação dos organismos públicos fiscalizadores em operações além dos estabelecimentos de produção, armazenagem e distribuição de alimentos, para se pensar também em redes sociais com o potencial de propagação dos esquemas de fraudes. Os dados deste estudo, no entanto, servem como balizadores para análise de matérias-primas e insumos dentro dos programas de Food Fraud que compõem os sistemas de gestão da segurança dos alimentos nas empresas.

Outro ponto a ser considerado nas tendências para estudos futuros é o número de fraudes por “Falsificação e mercado negro”, cujo aumento de casos noticiadas em 2020 foi de 342% em relação a 2019. Apesar do aumento, este tipo específico de fraude é menos sofisticado, sob o aspecto técnico, em relação a outros tipos de fraudes, tais como substituição ou remoção de constituintes e raramente praticado nas vendas B2B, o que reforça a necessidade de esforços mais direcionados no nível das fiscalizações pelos organismos governamentais.

No nível das fraudes com relevância para a segurança dos alimentos, os dados também trazem alertas e necessidades de atenção para a saúde pública. Tanto as fraudes de risco direto como as fraudes alimentares de risco indireto à saúde dos consumidores tiveram aumento, sendo os percentuais de 336% e 245%, respectivamente. Dos oito países ranqueados com as maiores incidências de fraudes noticiadas, cinco tiveram aumento no percentual de fraudes com risco direto à saúde do consumidor. Os principais destaques entre os países com maiores incidências de fraudes e alertas de fraude em 2020 foram: Itália, Paquistão, Índia e Espanha. Todos os países citados foram igualmente destaques em 2019, conforme OLIVEIRA e TERRA, 2020 (FOOD FRAUD EUROPEAN COMMISSION – Análise de dados de 2019).

Em relação aos grupos de alimentos envolvidos com fraudes alimentares noticiadas e o respectivo risco à segurança dos alimentos, destacam-se “Laticínios”, “Bebidas alcoólicas” e “Frutos do mar”. Todos estes grupos de alimentos tiveram aumento percentual nas incidências de risco direto à saúde do consumidor.

Conclui-se, de forma geral, que 2020 apresentou um aumento dos números de casos de fraudes e de alertas de fraudes em alimentos noticiados pela EUROPEAN COMMISSION, com o agravante do aumento de número de fraudes com risco direto à saúde do consumidor. Os dados ainda não são suficientes para estabelecer tendências, mas, direcionamentos e alertas, principalmente para as atividades de fiscalização por órgãos públicos e para orientar as empresas privadas em suas estratégias de mitigação de fraudes, controle de fornecedores e compliance, dadas as características dos tipos de fraudes, grupos de alimentos envolvidos e países associados às ocorrências. A continuidade de trabalhos desta ordem é fundamental e pode ganhar a ampliação de sua qualidade quanto melhor for a descrição das notícias publicadas pela imprensa, principalmente em relação aos dados de volumes envolvidos nas fraudes e a maior especificidade dos alimentos apreendidos.

 

[1]  Principais esquemas de certificação para a segurança dos alimentos utilizados no Brasil.

7. Referências bibliográficas

  • ABNT NBR ISO 22000. Segunda edição. Brasil, 2019.
  • EUROPEAN COMMISSION – Knowledge for policy – https://ec.europa.eu/info/index
  • FSSC 22000 – Guidance on Food Fraud Mitigation. Version 1. April/18
  • FIGUEIRA, L. C. CONCEITO DE DEFESA DOS ALIMENTOS (FOOD DEFENSE) E FRAUDE EM ALIMENTOS (FOOD FRAUD) APLICADA EM FÁBRICA DE TEMPEROS CÁRNEOS – UM ESTUDO DE CASO. Dissertação de mestrado. Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos – USP. Pirassununga – SP, 2018.
  • FILIPE, A. F. P. AVALIAÇÃO DA VULNERABILIDADE À FRAUDE ALIMENTAR: O CASO DO TALHO NACIONAL. Dissertação de mestrado. Universidade de Évora. Évora, 2019.
  • OLIVEIRA, M. V. P. e TERRA, C. S. FOOD FRAUD EUROPEAN COMMISSION – Análise de dados de 2019. Liner Consultoria. Holambra – SP, 2020.
  • SANTOS, M.A.D. FRAUDE ALIMENTAR – ANÁLISE DOS RESULTADOS OBTIDOS DE AMOSTRAS NÃO CONFORMES DO GÉNERO ALIMENTÍCIO MEL. Dissertação de mestrado. ULHT. Lisboa, 2017.
  • SCHNEIDER, S. e COLABORADORES – OS EFEITOS DA PANDEMIA DA COVID-19 SOBRE O AGRONEGÓCIO E A ALIMENTAÇÃO. Estudos Avançados 34 (100), 2020. Páginas 167 a 188.
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Psicólogo organizacional e consultor especialista na área de gestão, inteligência e cultura de segurança dos alimentos. Palestrante, treinador, coaching para liderança e desenvolvimento de equipes de alto desempenho. Autor do livro de bordo o “Passo além da competição” e coautor dos livros SER+ em Gestão de Pessoas e SER+ com Qualidade Total. Diretor Geral da Liner Consultoria www.linerconsultoria.com.br

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