Tarde demais para um churrasco?

“Comer é um ato agrícola” (Wendell Berry)

Diante da realidade em que vivemos estão em xeque nossos modelos de vida e produtivos. Dentre eles, o agronegócio é um dos principais focos de questionamento. Esse texto de autoria do médico veterinário Sebastião Faria Jr., Gerente de Educação Corporativa na MSD Saúde Animal, traz algumas reflexões muito pertinentes.  

 

“As duas inscrições rupestres vistas aqui mostram o ser humano em busca de proteínas, ainda que não soubesse disso. O que separa as duas imagens aconteceu durante a chamada Revolução Agrícola Neolítica, entre 10.000 e 5.000 anos a.C.: neste processo, a caça deu lugar à domesticação de animais.”

 

O domínio do fogo introduziu o costume de cozinhar os alimentos, o que trouxe a vantagem de um melhor aproveitamento dos nutrientes. Porém, é claro que não se pode imaginar o homem das cavernas fazê-lo com esse objetivo. Em seu livro ‘De caçador a gourmet: uma história da gastronomia’, Ariovaldo Franco observa que as temperaturas elevadas “liberam odores e sabores” dos alimentos; para Rob Dunn e Monica Sanchez, também, o que levou nossa espécie a assar as carnes e vegetais foi a busca do sabor – a vantagem nutricional, considerada um passo importante na evolução humana, teria sido um efeito colateral, como demonstram em Delicious: the evolution of flavour and how it made us human, recém-publicado e ainda sem tradução no Brasil.

As startups do Vale do Silício que apostam no hambúrguer produzido em laboratório, por cultura de tecidos, ainda penam para criar sabor, até aqui à custa de cargas pesadas de sódio; assim como todos os esforços para fazer produtos vegetais “com sabor idêntico ao da carne”…será que comida fake é único caminho sustentável? Sob quais critérios?

Em diferentes culturas a carne vermelha, em especial a bovina, tornou-se alimento valorizado. Antonio Candido, em seu clássico ‘Os parceiros do Rio Bonito’, descreve em detalhes como a alimentação do caipira paulista era baseada em vegetais nativos, frangos e suínos; a carne bovina uma iguaria reservada a ocasiões especiais e objeto de desejo. Em busca de uma refeição de carne de boi o personagem de ‘A marvada carne’ encontra o romance com a adorável cabocla, devota de Santo Antonio, interpretada por Fernanda Torres. A posse de bovinos é sinal de status social, das tribos africanas à moda ‘O Rei do Gado’.

Os pecados da carne

Essa história chega aos dias atuais, quando o modo como o alimento é produzido e seu impacto no futuro se torna preocupação tão importante quanto os atributos intrínsecos do alimento, como sabor e qualidade. E traz desafios à vida de quem produz.

Há 8 anos, a Universidade Corporativa da MSD Saúde Animal conduziu uma pesquisa em parceria com o Prof. José Luiz Tejon Megido, da ESPM, sobre como a mídia não especializada tratava a pecuária. A percepção de muitos profissionais deste setor era de que havia sempre uma ênfase na associação com questões como o desmatamento, os maus tratos aos animais e problemas de saúde pública. Foram monitorados alguns dos principais veículos de alcance nacional, jornais, revistas e telejornais, com a classificação das matérias em “positivas”, “negativas” ou “neutras”. Não houve evidências que demonstrassem qualquer viés; por outro lado, ficou clara a pouca atenção dada à atividade, com poucas matérias ao longo do período estudado. No evento com a mídia especializada em que se apresentaram e discutiram os resultados, a conclusão: não somos mal vistos, e sim muito pouco vistos, e este é o problema real.

Será que a defesa da pecuária era feita corretamente? Seria producente negar os números do desmatamento e das mudanças climáticas? O perigo das ações reativas não seria o de misturar pecuaristas sérios a criminosos, e assim transformar o espírito de corpo em espírito de porco?

Iniciativas como o Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável (GTPS), uma associação que reúne de pecuaristas e frigoríficos a organizações ambientalistas não governamentais, e a Estratégia Produzir, Conservar, Incluir (PCI), em Mato Grosso, têm apontado novos caminhos, desenvolvido um trabalho sério e coordenado para separar o joio do trigo, fomentar as melhores práticas e, no caso da PCI, também combater os crimes ambientais.

É fácil notar que o aumento da demanda por alimentos nobres como as proteínas de origem animal no início dos anos 2000 se deveu menos ao crescimento populacional, e mais ao aumento da renda em países ditos emergentes que aplicaram a inclusão pelo consumo na base da pirâmide social. Há um conceito básico na economia da alimentação: carboidratos são chamados bens “inferiores”, cujo consumo tende a estagnar ou se reduzir quando a renda cresce; com as proteínas de origem animal acontece o contrário, o consumo acompanha a ascensão da renda, por isso são consideradas bens “superiores”. Os ciclos econômicos sempre demonstram isso: nos períodos mais difíceis, os mais pobres tiram seu sustento de fontes energéticas baratas como açúcar e arroz, e quando têm mais dinheiro procuram as carnes e laticínios. Por isso, alguns economistas autointitulados liberais tentam ajustar a proposta: não se pode proibir a carne, afinal, somos liberais, mas temos que restringir o consumo através do preço…Isto quer dizer: achamos que a produção de carne faz mal ao meio ambiente, então vamos limitar o direito de cometer o pecado de lesa-planeta a alguns privilegiados. Ou: “pobres do mundo, sentimos muitíssimo, mas vocês chegaram atrasados para o churrasco”. O cinismo chega a ser assombroso.

As virtudes da comida de verdade

Já sabemos o que perderemos se não mudarem os sistemas de produção e consumo da humanidade: a própria vida na Terra. Talvez seja preciso lembrar também o que podemos perder se transformarmos a alimentação em mera inserção de nutrientes no organismo. O ato social, a comunhão e fruição de sabor em torno do fogo, darão lugar à ingestão sôfrega de misturas industrializadas sem tirar os olhos do computador?

Felizmente, há reações: do movimento slow food às políticas públicas de alimentação escolar que valorizam a produção da agricultura familiar local, não faltam exemplos de que é possível introduzir o vetor cultural e a educação alimentar para um desenvolvimento rural em bases duráveis. Educar para valorizar a alimentação saudável, a culinária regional e os circuitos curtos de produção e consumo parece um caminho inteligente para preservar ao mesmo tempo nosso entorno ambiental e nossa essência humana, num conceito de saúde e bem-estar únicos.

Um desafio a não esquecer, ainda pouco enfrentado, é o preço: comer frutas variadas sai muito mais caro que salgadinhos, batata frita com sabor de picanha ou bolachas recheadas.

“Alimentar o mundo”, esta expressão que adoramos usar por aqui, é bem mais complexo que bater recordes de produtividade, sem negar o valor destes. Justiça no acesso à comida de verdade – entendida como nutrição, sabor e cultura – através da ciência, tecnologia e políticas públicas, deveria representar a dimensão social da sustentabilidade e a grande causa da agropecuária.

P.S.: Triplamente honrado: com o convite da Adriana Moura, com a vizinhança ilustre e com o público tão qualificado, espero estar à altura, ao estrear esta coluna que tem a pretensão de olhar o desenvolvimento rural sob uma perspectiva cultural.

PARA OUVIR:

Tião Carreiro e Pardinho – O Rei do Gado – https://youtu.be/bv3593lmltY

PARA ASSISTIR:

André Klotzel – A marvada carne https://www.youtube.com/watch?v=y6oM2XdOVc4

PARA NAVEGAR:

Estratégia: Produzir, Conservar e Incluir – http://pci.mt.gov.br

Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável – http://gtps.org.br

PARA LER:

– Candido, A. Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo: EDUSP, 2017.

– Carneiro, H. Comida e Sociedade – uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Campus, 2003.

 – Dunn, R.; Sanchez, M. Delicious: the evolution of flavour and how it made us human. Princeton: Princeton University Press, 2021.

– Franco, A. De caçador a gourmet. São Paulo: Editora SENAC, 2001.

– Mazoyer, M.; Roudart, L. História das agriculturas no mundo – do neolítico à crise contemporânea. São Paulo: Editora UNESP; Brasília: NEAD, 2000.

– Rodgers, D.; Wolf, R. Sacred cow – the case for (better) meat: why raised meat is good for you and good for the planet. Dallas: BenBella Books, 2020.

 

Fonte: Mundo Agro Brasil

Sebastião Faria Jr.

Gerente de Educação Corporativa na MSD Saúde Animal, onde criou e implementou a universidade corporativa no Brasil e América Latina. Responsável por Programas e Parcerias Estratégicos da Universidade MSD Saúde Animal.
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