O moderno sistema alimentar transformou radicalmente a estrutura social, econômica, política e cultural das sociedades. Inspirada na lógica industrial, os objetivos estão centrados numa economia de baixo custo e grande escala, projetada com tecnologia e eficiência para oferecer “mais por menos” ao consumidor final. Essa equação se traduz em mais produtos na prateleira a um preço cada vez menor de produção, beneficiando exclusivamente os grandes fabricantes e redes varejistas multinacionais. O aprovisionamento contemporâneo de alimentos está se tornando cada vez mais desencaixado dos seus contextos. As práticas tradicionais limitadas ao tempo e ao espaço de produção e consumo de alimentos são retiradas dos seus contextos locais e são reencaixadas em redes e fluxos globais.
Quando a produção de alimentos era enraizada em contextos locais específicos, sua identidade era determinada pelas épocas de plantio e por ecossistemas particulares juntamente com práticas socioculturais tradicionais. Atualmente, em quase todo o mundo, a base da alimentação provém de um sistema de produção e distribuição em escala planetária, cabendo à indústria alimentícia o papel de definir o que e como as pessoas comem. Neste sentido, em cadeias globais de suprimento de alimentos a identidade do alimento não é dada de antemão e tem que ser novamente (re) inventada”.
Em 2013, a OXFAM, uma confederação global dedicada ao combate da pobreza e das desigualdades, revelou que dez empresas do ramo controlam praticamente todas as marcas de produtos alimentícios que populações do mundo inteiro compram e consomem. A tendência atual das cadeias alimentares globais é a
concentração em poucas transnacionais associadas à agroindústria, aos monocultivos, ao uso de agrotóxicos, aos plantios transgênicos e anulação das pequenas produções locais garantidoras da sociobiodiversidade nos agroecossistemas terrestres.
Nesse contexto, a alimentação tem-se homogeneizado progressivamente, passando de um sistema diversificado para outro hiperespecializado e integrado aos amplos sistemas de produção agroalimentar. Neste sentido, vários especialistas têm evidenciado, por exemplo, que muitas espécies de peixes marinhos, familiares em mercados locais tem desaparecido e são substituídos por espécies mais exóticas e homogêneas. Associada a isso, tem-se a apropriação privada das tecnologias envolvidas na produção, na transformação,
nos processos de embalagem e transporte e até mesmo na comercialização de alimentos.
Um dos grandes limitadores da promoção de uma alimentação de qualidade e culturalmente apropriada é a grande concentração econômica do varejo. Esse processo predatório de concentração do varejo alimentar foi um dos fatores que levaram ao surgimento do que ficou conhecido como ‘desertos alimentares’. Deserto alimentar é um fenômeno com diversas facetas, componentes e variáveis. O conceito diz respeito à ausência de alimentos que contribuam para a saúde e bem-estar na alimentação de uma pessoa. Desertos alimentares são regiões onde
é muito difícil ter acesso a alimentos saudáveis e frescos, deixando a população local mais vulnerável à má nutrição e a doenças relacionadas ao consumo de alimentos industrializados, ultraprocessados e sem valor nutricional. Portanto, deserto alimentar pode ser evidenciado pela combinação de uma série de variáveis: falta de informação, renda, tempo e distância dos locais que ofereçam alimentos in natura e minimamente processados. Desse modo, para a indústria alimentícia, a definição de alimento passa a ser pautada no entendimento do alimento-mercadoria, onde o objetivo maior é a disponibilidade de produtos gerados por meio de alta tecnologia industrial associada aos ingredientes de fácil aquisição e baixo custo. Isso é o que se come.
A pretexto de se alimentar uma população global que cresce exponencialmente, a abordagem mais tradicional, ao longo do último século, foi buscar o aumento da produção total de alimentos. A principal diretriz para se lidar com um cenário de demanda crescente por alimentos tem sido a busca por melhoria contínua na produtividade das culturas (fortemente influenciadas pelo aprimoramento de fertilizantes e pesticidas). Com vistas a aumentar a disponibilidade alimentar, tem-se defendido um sistema de produção, distribuição e consumo desigual e injusto, com fortes impactos na saúde pública, permanecendo a fome no mundo e a violação de direitos humanos. Entretanto, o capitalismo, entendido como aquele modo de produção e consumo que une a, o poder e a natureza na unidade dialética, tem sido capaz de evadir a assim chamada dinâmica malthusiana através de uma surpreendente capacidade acumulação histórica de produzir, localizar e ocupar a natureza de maneira barata e externalizada ao sistema.
Há quem considere que reduzir a perda e o desperdício de alimentos poderia aliviar parte das pressões sobre a produção agrícola nos próximos anos e aumentar a segurança alimentar, especialmente para os setores mais pobres e vulneráveis da sociedade. Por outro lado, o aproveitamento de alimentos não utilizados comercialmente poderia ser uma solução eficaz para a resolução dos problemas emergenciais que o mundo enfrenta devido à fome6 (BELIK; CUNHA; COSTA, 2012).
Entretanto, reduzir o desperdício de alimentos é, potencialmente, um dos “frutos mais fáceis de colher”7 para se concentrar na busca pela esverdeamento da cadeia alimentar, melhorar sua eficiência e aumentar a disponibilidade de alimentos. Recuperar e consumir alimentos provenientes do lixo pressupõe a existência de excedentes alimentares e que eles são descartados, o que se inscreve na atual sociedade capitalista ocidental, caracterizada pela produção massificada, pela hiperabundância, pelo consumismo desenfreado e pelo desperdício alarmante. Pensar nas diversas etapas da cadeia de aprovisionamento e consumo alimentar, nas suas trajetórias em nível global e no conjunto de recursos naturais e econômicos despendidos permite avaliar melhor a magnitude do desperdício alimentar e dos impactos ambientais, à escala mundial, que esses processos configuram. Até certo ponto, o desperdício é apenas mais um sinal da insustentabilidade do crescimento.
Quando se diz que o grande volume de alimentos que são perdidos ou desperdiçados seria mais do que suficiente para alimentar os famintos do mundo, cria-se a falsa expectativa de que se reduzindo as perdas ou o desperdício de uns, equaciona-se a fome de outros. Estes são fenômenos de natureza distinta que não
se conectam de forma direta, quando se sabe que a condição de faminto resulta da incapacidade de acesso aos alimentos e não da falta de bens.
A lógica econômica, que predomina no sistema alimentar global (e no Brasil), bem como a ausência de ações educativas estão na raiz do problema que se quer
enfrentar. Embora a questão das P&DA aponte desafios e impactos comuns, não há uma única solução, é preciso considerar a especificidade da cultura do descarte e do padrão de desenvolvimento socioeconômico local. Para Maluf (2013, p. 9), quando se adota enfoque abrangente, intersetorial e sistêmico da segurança alimentar e nutricional, outros e mais amplos aspectos entram em cena na abordagem de como a redução das P&DA diminui a insegurança alimentar e nutricional. Ou seja, trata-se de uma estratégia imprescindível à garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), “direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal” (BRASIL, 2006). Entretanto, observa-se uma série de violações a esse direito, quando se entende o alimento constituído como uma mercadoria e que, como tal, não cumpre sua função estruturante da organização social e ganha a de acumular capital, numa repetição interminável da circulação enquanto tal.
Muitos autores defendem que o termo soberania alimentar traz em seu bojo uma forma de produção que pretende unir a produtividade com a conservação ambiental, e que a conservação da biodiversidade é benéfica para a produção de pequena escala, aumentando a eficiência na produção. Ou seja, é um sistema que usa melhor os recursos ambientais disponíveis, sendo beneficiado pelos serviços ecossistêmicos, como o controle de pragas, por exemplo. Há também o interesse em preservar os saberes agrícolas tradicionais, como a rotação de plantio, e não só de preservar, mas reconhecer que esses saberes impactam positivamente a produção de alimentos.
A lógica do lucro é capaz de gerar o paradoxo de fazer que alimentos, transformados em commodities10, gerem fome e insegurança. Camara (2017) chama atenção para o reconhecimento do valor da biodiversidade como um importante ponto chave para lidar com os sistemas alimentares. De fato, “alimentos mais recomendados à saúde têm o menor impacto ambiental” e o inverso é verdadeiro. Essa relação pode ser visualizada na pirâmide dupla alimentos-meio ambiente (figura nº 1).
Figura nº 1 – Pirâmide dupla: recomendações nutricionais e impactos ambientais, respectivos.
Na prática, saúde humana e proteção ambiental se encaixam em um único modelo alimentar, havendo quem advogue a busca de uma nova equação, onde os elementos que determinam saúde e bem-estar se equilibrem com a conservação da natureza. As pesquisas na área de nutrição sempre estiveram interligadas com setores da saúde e agricultura, deixando de fora muitas vezes as questões ambientais, um importante elo com o setor de nutrição.
Entretanto, em muitos casos, o desperdício tornou-se um recurso, impulsionado pela produção de fronteiras de produtos baseados em resíduos. Isto tem sido permitido por novas regulamentações (por exemplo, privatização da gestão de resíduos) e métodos de processamento (como incineração de resíduos para energia). Congratulamo-nos com abordagens que se concentram nos mecanismos
metabólicos, políticos, econômicos, legais e/ou burocráticos que questionam a produção dessas fronteiras localizadas de commodities.
Por esses motivos, é preciso continuar ampliando nossos entendimentos sobre as bases fundantes que sustentam o desperdício de alimentos, considerando-se a escala, os desafios técnicos, operacionais, mas, sobretudo, os aspectos político-institucionais e socioculturais que nos impedem de avançar por caminhos alternativos, considerando o alimento para além de sua função mercadológica.
SYLMARA GONÇALVES DIAS
Professora Doutora e Associada da Escola de Artes, Ciências
e Humanidades da Universidade de São Paulo. Programas
de Pós-Graduação em Ciência Ambiental e Sustentabilidade.
Bacharelado em Gestão Ambiental. Especialista em produção e
transformação sustentável de alimentos.
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