A pretexto de se alimentar uma população global que cresce exponencialmente, a abordagem mais tradicional, ao longo do último século, foi buscar o aumento da produção total de alimentos. A principal diretriz para se lidar com um cenário de demanda crescente por alimentos tem sido a busca por melhoria contínua na produtividade das culturas (fortemente influenciadas pelo aprimoramento de fertilizantes e pesticidas). Com vistas a aumentar a disponibilidade alimentar, tem-se defendido um sistema de produção, distribuição e consumo desigual e injusto, com fortes impactos na saúde pública, permanecendo a fome no mundo e a violação de direitos humanos. Entretanto, o capitalismo, entendido como aquele modo de produção e consumo que une a, o poder e a natureza na unidade dialética, tem sido capaz de evadir a assim chamada dinâmica malthusiana através de uma surpreendente capacidade acumulação histórica de produzir, localizar e ocupar a natureza de maneira barata e externalizada ao sistema.
Há quem considere que reduzir a perda e o desperdício de alimentos poderia aliviar parte das pressões sobre a produção agrícola nos próximos anos e aumentar a segurança alimentar, especialmente para os setores mais pobres e vulneráveis da sociedade. Por outro lado, o aproveitamento de alimentos não utilizados comercialmente poderia ser uma solução eficaz para a resolução dos problemas emergenciais que o mundo enfrenta devido à fome (BELIK; CUNHA; COSTA, 2012).
Entretanto, reduzir o desperdício de alimentos é, potencialmente, um dos “frutos mais fáceis de colher” para se concentrar na busca pelo “esverdeamento” da cadeia alimentar, melhorar sua eficiência e aumentar a disponibilidade de alimentos. Recuperar e consumir alimentos provenientes do lixo pressupõe a existência de excedentes alimentares e que eles são descartados. Isto se inscreve na atual sociedade capitalista ocidental, caracterizada pela produção massificada, pela hiperabundância, pelo con-umismo desenfreado e pelo desperdício alarmante. Pensar nas diversas etapas da cadeia de aprovisionamento e consumo alimentar, nas suas trajetórias em nível global e no conjunto de recursos naturais e econômicos despendidos permite avaliar melhor a magnitude do desperdício alimentar e dos impactos ambientais, à escala mundial, que esses processos configuram. Até certo ponto, o desperdício é apenas mais um sinal da insustentabilidade do crescimento.
Quando se diz que o grande volume de alimentos que são perdidos ou desperdiçados seria mais do que suficiente para alimentar os famintos do mundo, cria-se a falsa expectativa de que se reduzindo as perdas ou o desperdício de uns, equaciona-se a fome de outros. Estes são fenômenos de natureza distinta que não se conectam de forma direta, quando se sabe que a condição de faminto resulta da incapacidade de acesso aos alimentos e não da falta de bens. A lógica econômica, que predomina no sistema alimentar global (e no Brasil), bem como a ausência de ações educativas estão na raiz do problema que se quer enfrentar. Embora a questão das P&DA aponte desafios e impactos comuns, não há uma única solução, é preciso considerar a especificidade da cultura do descarte e do padrão de desenvolvimento socioeconômico local. Para Maluf (2013, p. 9), quando se adota enfoque abrangente, intersetorial e sistêmico da segurança alimentar e nutricional, outros e mais amplos aspectos entram em cena na abordagem de como a redução das P&DA diminui a insegurança alimentar e nutricional. Ou seja, trata-se de uma estratégia imprescindível à garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), “direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal” (BRASIL, 2006). Entretanto, observa-se uma série de violações a esse direito, quando se entende o alimento constituído como uma mercadoria e que, como tal, não cumpre sua função estruturante da organização social e ganha a de acumular capital, numa repetição interminável da circulação enquanto tal.
Muitos autores defendem que o termo soberania alimentar traz em seu bojo uma forma de produção que pretende unir a produtividade com a conservação ambiental, e que a conservação da biodiversidade é benéfica para a produção de pequena escala, aumentando a eficiência na produção. Ou seja, é um sistema que usa melhor os recursos ambientais disponíveis, sendo beneficiado pelos serviços ecossistêmicos, como o controle de pragas, por exemplo. Há também o interesse em preservar os saberes agrícolas tradicionais, como a rotação de plantio, e não só de preservar, mas reconhecer que esses saberes impactam positivamente a produção de alimentos.
A lógica centrada no lucro é capaz de gerar o paradoxo de fazer que alimentos, transformados em commodities, gerem fome e insegurança. Camara (2017) chama atenção para o reconhecimento do valor da biodiversidade como um importante ponto chave para lidar com os sistemas alimentares. De fato, “alimentos mais recomendados à saúde têm o menor impacto ambiental” e o inverso é verdadeiro. Essa relação pode ser visualizada na pirâmide dupla alimentos-meio ambiente.
Na prática, saúde humana e proteção ambiental se encaixam em um único modelo alimentar, havendo quem advogue a busca de uma nova equação, onde os elementos que determinam saúde e bem-estar se equilibrem com a conservação da natureza. As pesquisas na área de nutrição sempre estiveram interligadas com setores da saúde e agricultura, deixando de fora muitas vezes as questões ambientais, um importante elo com o setor de nutrição.
Entretanto, em muitos casos, o desperdício tornou-se um recurso, impulsionado pela produção de fronteiras de produtos baseados em resíduos. Isto tem sido permitido por novas regulamentações (por exemplo, privatização da gestão de resíduos) e métodos de processamento (como a compostagem, a biodigestão de resíduos para energia, entre outros). Frente aos desafios e contradições do contexto, congratulamo-nos com abordagens que se concentram nos mecanismos metabólicos, políticos, econômicos, legais e/ou burocráticos que questionam a produção dessas fronteiras localizadas de commodities.
Por esses motivos, é preciso continuar ampliando nossos entendimentos sobre as bases fundantes que sustentam o desperdício de alimentos, considerando-se a escala, os desafios técnicos, operacionais, mas, sobretudo, os aspectos político-institucionais e socioculturais que nos impedem de avançar por caminhos alternativos, considerando o alimento para além de sua função de mercadoria.
(Este Editorial é extraído do trabalho da mesma autora, que aparece publicado na íntegra, nesta edição, nas páginas 21 a 27)
Sylmara Gonçalves Dias, dezembro, 2018.
Professora Associada da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo.
Programas de Pós-Graduação em Ciência Ambiental e Sustentabilidade.
Bacharelado em Gestão Ambiental.
Especialista em Sustentabilidade nas cadeias de produção e consumo.
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Infelizmente o desperdício de alimentos do Brasil e muito triste Sou a favor de doação de alimentos , Marmitex , e outros , onde sobra alimentos e não doam, também alimentos com datas de validades , doar , o Brasil seria outro
Agradecemos seu comentário Patrícia. Veja em nosso site a notícia “Restaurantes doarão excedentes de alimentos a pessoas que enfrentam a fome e a pobreza em SP” publicada em 10 de maio. Vem de encontro a sua opinião. E hoje foi publicado na edição atual da Revista Higiene Alimentar, novo artigo na mesma temática (Avaliação de desperdício de alimentos em unidade escolar de Niterói-RJ). Confira.
Infelizmente ainda no Brasil , existe a fartura e muita gente passando fome.Sobras de alimentos em escolas, industrias , e em restaurantes , infelizmente não são reaproveitados , enriquecendo o lixo.Lamentavel .Deveria ter Marmitex com as sobras dos alimentos e as empresas terem desconto nos impostos de rendas , assim com certeza muitas pessoas não morreriam de fome.