Por Elizabeth Balbachevsky, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Daniela Carolina Perutti, pós-doutoranda do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, e Gustavo Carneiro Vidigal Cavalcanti, doutorando da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP*
A incidência da fome está associada a emergência de situações históricas críticas. Sua expressão máxima, quando grupos sociais inteiros não têm acesso à nutrição mínima para a sua sobrevivência, é o indicador mais poderoso de que essa sociedade está passando por uma crise avassaladora. Mais comumente, a fome descreve situações de carência permanente, onde uma família não consegue amealhar recursos suficientes para estar tranquila sobre a continuidade do seu acesso à comida. Mas a questão da fome se liga também à qualidade da alimentação ao alcance dessa família. É sabido que, em todo mundo, inclusive em países do norte global, uma parcela importante da população restringe seu cardápio a alimentos ultraprocessados mais acessíveis, que saciam a fome sem oferecer os nutrientes necessários para a saúde. É o conhecido fenômeno da incidência de altas taxas de obesidade associadas a situações de carência alimentar profunda e permanente.
Portanto, a questão da fome é um fenômeno complexo, multifacetado, que emerge associado ao conjunto de múltiplas condições que produzem e reproduzem a desigualdade. O desenho de políticas para enfrentar a fome não é um exercício simples.
No curto prazo, políticas contra a fome focam em garantir o acesso ao alimento: elas se corporificam em programas de distribuição de cestas básicas e de transferência de renda para setores da sociedade criticamente afetados pela insegurança alimentar. No Brasil, a política de oferta de merenda escolar evoluiu para se converter numa poderosa política pública voltada para evitar os efeitos deletérios da fome. Essa política garante o acesso a refeições balanceadas e ricas às crianças matriculadas no ensino básico. Simultaneamente, ao dirigir parte de suas compras para a aquisição de produtos oriundos da agricultura familiar, ela contribui para criar um mercado com potencial para estabilizar e aumentar os ganhos das famílias de pequenos agricultores, que estão entre os setores mais afetados pela pobreza.
Outra família de políticas voltadas para o enfrentamento da fome foca especificamente a questão da qualidade nutricional da alimentação acessível à população. A produção de conhecimento nessa área, no Brasil, é impressionante. Aqui, o desafio está na conversão desse conhecimento em políticas baseadas em evidências. A ação regulatória do estado sobre a indústria de alimentos, em particular os alimentos ultraprocessados é uma faceta central dessa família de políticas.
Mas para além desse marco, essas políticas apontam para a necessidade de mudança nos valores das famílias – elas propõem garantir e, principalmente, ressignificar o acesso a alimentos menos processados, a um cardápio mais rico, variado e nutritivo. Para serem bem-sucedidas, essas políticas supõem uma “conversão de valores”. A experiência de desenho de políticas públicas no Brasil tem tido pouco sucesso nessa mudança. Nossa tradição ofertista, que centra toda a iniciativa nas mãos do poder público, limita fortemente o impacto das políticas públicas nessa dimensão. A conversão de valores só ocorre com o engajamento ativo daqueles que um desenho mais tradicional de políticas define como sendo os seus “beneficiários”, seu público-alvo. A nova geração de políticas contra a fome supõe o reconhecimento da centralidade da mobilização ativa da energia social acumulada no tecido social que constrói a vasta periferia de nossa sociedade.
Nos estudos que realizamos no distrito do Grajaú, na cidade de São Paulo, com enfoque específico na Ilha do Bororé, tivemos contato e pudemos reconstituir parte da riqueza de alternativas de mobilização que caracteriza a vida social nas nossas periferias. Em não raras oportunidades, pudemos identificar experiências de “sequências invertidas”, trajetórias que invertem a causalidade usualmente assumidas nos nossos modelos de políticas públicas, e onde a iniciativa parte e permanece nas mãos das lideranças locais (HIRSHMAN, 1984). Em uma região onde a ação regulatória do Estado não está suficientemente presente, e ele é percebido como um causador de parte dos problemas sociais (como a poluição da represa Billings e a falta de acesso à água); a ação regulatória da comunidade, herdeira de um passado participativo, tem um efeito importante no fomento a políticas públicas. Reconhecer, valorizar, e incorporar essas trajetórias e seus atores como sujeitos de políticas – e não apenas como seus beneficiários – é um passo fundamental para o sucesso de uma nova geração de políticas que mude intrinsicamente o valor da alimentação saudável em nossa sociedade.
* Membros do GT USP “Políticas Públicas de Combate à Insegurança Alimentar e à Fome”
E-mail: grupocombatefome@usp.br
Fonte: JORNAL DA USP
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