Assino Veja há muitos anos e sempre inicio sua leitura pelo final, com as exposições de Roberto Pompeu de Toledo e J.R. Guzzo, aos quais rendo minhas homenagens pelo cuidado, propriedade e profundidade dos assuntos tratados, particularmente aqueles de natureza política, social e comportamental. Não obstante, ao ler o comentário O QUEIJO E A LEI (J.R. Guzzo, Veja nº 2290, pg.154), senti que o autor tratava o assunto de maneira bastante superficial, o que não é o seu estilo. Assim, atrevi-me a enviar à redação daquela revista o presente texto, com a única finalidade de complementá-lo.
À primeira vista e pelo ângulo de visão usado pelo caríssimo jornalista, é necessário concordar com ele, pois: 1 – existe um grande e antigo anseio dos produtores de queijos Canastra e do Serro, para que o produto seja comercializado fora de Minas Gerais; 2 – a legislação que rege a produção, industrialização e comercialização dos alimentos no Brasil é bastante antiga e, em muitos pontos, conflituosa; 3 – especificamente em relação ao SIF, a legislação data de 1952 e, embora eficaz, sua atualização poderia ser mais rápida.
Agora, é necessário entender porque tudo isso acontece e porque outros ângulos devem ser considerados quando se estuda a cadeia produtiva dos alimentos, mormente os de origem animal, como a carne, o leite, o pescado, o mel e todos os produtos derivados dessas matérias-primas. Estes produtos são particularmente vulneráveis à contaminação bacteriana e, por serem perecíveis, devem ser protegidos e exigem mecanismos eficientes de conservação, a fim de atingirem os centros consumidores em plena condição de qualidade.
A legislação do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, MAPA, é antiga, porém sempre foi muito eficiente para garantir as condições de qualidade dos produtos, condição essa atestada pelos organismos sanitários dos países que importam alimentos do Brasil, já que verdadeiramente não exportaríamos sequer um quilo de alimento se não contássemos com essa legislação do MAPA. Em contrapartida, o Brasil não comprará alimento de um país que não certifique sua qualidade através de um organismo semelhante ao SIF, Serviço de Inspeção Federal. Urge, pois, a melhoria constante deste serviço, no que tange ao material humano e tecnológico, tendo em vista sua repercussão sanitária, social e econômica.
Para se ter idéia da importância dessas legislações, basta acessar a imensa quantidade de normas e dispositivos que regem a Autoridade Sanitária Européia no que concerne aos alimentos que transitam pela Comunidade, bastando isso para entender o rigor dessa mesma Comunidade em relação aos alimentos importados. Entende-se daí porque são tão rigorosas as missões comerciais que nos visitam, fiscalizando as condições de produção e industrialização de alimentos no Brasil, particularmente no que tange às condições sanitárias para, somente então, avalizarem as transações. Tal preocupação é, hoje, globalizada, tendo em vista os riscos a que está sujeito o consumidor ao ingerir alimentos contaminados ou fraudados, especialmente quando se consideram as zoonoses (doenças naturalmente transmissíveis entre os animais e o homem), notadamente as de origem alimentar.
É compreensível, pois, que se fiscalize rigorosamente as cadeias de produção e industrialização de alimentos e não se permita que unidades sem condições tecnológicas e higiênicas produzam alimentos que poderão afetar a saúde dos consumidores. Ao se proibir o abate de animais em locais sem quaisquer condições técnicas, sem que haja exame da sanidade desse animal, põe-se em risco a saúde do consumidor. Não se trata, simplesmente, de se proibir o abate em pequena escala (ou doméstico): trata- -se de salvaguardar o consumidor e, isso, todos os países fazem. Acerca da pequena escala, diga-se, é uma questão que está sendo amparada pelo governo nos últimos anos, ao se dar ênfase à chamada agricultura familiar para a segurança alimentar. Porém, qualquer que seja o caso, deve-se exigir um mínimo de requisitos técnicos para a fabricação de alimentos, mesmo em pequena escala, para total segurança do consumidor.
Lembre-se, para exemplificar essa condição, do problema oriundo do abate clandestino de animais de açougue, podendo levar à teníase humana, doença ainda circulante no Brasil e para cuja transmissão a carne suína ou bovina têm participação fundamental, podendo levar a uma situação ainda mais aguda, representada pela neurocisticercose cerebral. Como estes, outros problemas de saúde pública poderiam ser lembrados, envolvendo alimentos precariamente produzidos, manipulados, distribuídos e comercializados e que, ingeridos, podem comprometer a saúde do consumidor. Imagine-se, portanto, a que riscos estaria submetida a população, caso não se fiscalizassem as cadeias de produção dos alimentos e se permitisse a produção dos mesmos em qualquer escala, sem que fossem obedecidos os mínimos preceitos higiênico-sanitários e sem atentar para as novas conquistas tecnológicas que emanam das pesquisas e do trabalho de centenas de profissionais dos vá- rios segmentos das ciências alimentares.
Relativamente ao anseio dos produtores artesanais do queijo Canastra e do Serro, entende-se o seu anseio e expectativa no sentido de ampliar o mercado para os queijos tão apreciados pela população. A propósito, o filme O Mineiro e o Queijo, um documentário político e poético de Helvécio Ratton, é marcante para explicar a questão e a proposta dos produtores. Acredita-se que o MAPA encontrará uma solução para este produto artesanal, sem ferir toda a legislação existente e sem incorrer num contrasenso, uma vez que o objetivo não é, tão somente, propiciar uma ampliação de mercado, mas sobretudo garantir a qualidade sanitária e tecnológica do produto, salvaguardando sempre a saúde do consumidor.
José Cezar Panetta
Editor, janeiro de 2013.
Professor aposentado da Faculdade de Veterinária da USP.
jcpanetta@higienealimentar.com.br
Revista Higiene Alimentar – Vol. 26 – nº 214/215 – novembro/dezembro de 2012
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