Por Fernando Fagundes Fernandes
Auditor Fiscal Federal Agropecuário
e
Ana Lúcia de Paula Viana
Auditora Fiscal Federal Agropecuária
Historicamente, a maior dificuldade do serviço público brasileiro tem sido manter um corpo técnico em número suficiente e lotados nos locais corretos para atender as demandas existentes e com o Serviço de Inspeção Federal – SIF não é diferente. Seja pela dificuldade para a realização de concursos públicos, pela má distribuição de pessoal, seja pela interferência política negativa ou pela insatisfação de servidores com suas lotações.
Como bem se sabe, é obrigatória a presença de um médico veterinário de maneira permanente nos estabelecimentos de abate de animais de açougue durante as atividades de inspeção ante e post mortem. O objetivo é resguardar a saúde pública, impedindo que animais doentes possam ser utilizados na produção de alimentos.
Ao longo dos anos, o SIF foi se modernizando e utilizando ferramentas de inspeção com base em risco, avaliando todos os pontos da cadeia produtiva que pode levar risco a saúde humana e animal em linhas com o que vem sendo utilizado pelos países exportadores e com as recomendações dos organismos internacionais.
Por suas especificidades, o SIF sofre bastante com todos esses aspectos e ainda mais, pois empresas abrem e fecham as portas todos os meses, aumentam ou diminuem suas capacidades produtivas e é necessária a remoção de servidores para atender essas demandas.
A remoção de servidores deveria ser baseada no interesse público, ou seja, se um servidor é necessário em um determinado local a Administração Pública deveria ser capaz de transferi-lo sem as interferências política, sindical ou judicial, muitas vezes acionada por servidores que se sentem prejudicados com a remoção, mesmo que esta tenha sido feita no interesse da Administração e devidamente fundamentada.
É preciso então buscar outros meios para recompor um corpo técnico que seja capaz de realizar o trabalho com a isenção e a independência exigidas, mas com a agilidade necessária, porque não se pode simplesmente negar um registro a uma empresa porque a Administração Pública não é capaz de fornecer pessoal para realizar o trabalho de inspeção ante e post mortem.
Quando falo em corpo técnico aqui, me refiro principalmente a médicos veterinários capacitados para exercer a atividade de inspeção ante e post mortem.
Muitas soluções foram encontradas para o mesmo problema por diversos gestores, dentro e fora do país (serviços de inspeção de outros países e serviços de inspeção estaduais e municipais brasileiros). Algumas soluções mantém a isenção e a independência do corpo técnico, como é o caso do Reino Unido, caso em que o Estado contrata e paga empresa que fornece médicos veterinários para a Administração Pública, que os capacita e supervisiona e a qual ficam subordinados.
Há casos em que essa isenção é questionável, como nos serviços estaduais do Paraná, Santa Catarina e Espírito Santo, em que o Estado cadastra empresas que fornecem médicos veterinários (que devem buscar sua própria capacitação) aos estabelecimentos registrados para exercer a atividade de inspeção ante e post mortem. Esses mesmos estabelecimentos escolhem livremente qual empresa querem contratar e as pagam diretamente. Há ainda o Mato Grosso, que estabeleceu algo como um acordo de cooperação técnica com uma cooperativa de médicos veterinários para realização dessa atividade.
É importante salientar que houve várias iniciativas via Projeto de Lei (334-A/2015 e 1889/2020, entre outros) ou simplesmente via solicitações ao Gabinete Ministerial do MAPA para que o SIF adotasse ou aceitasse o modelo já adotado pelos estados citados.
Publica-se, então, o Decreto nº 10.419/2020 que define basicamente como serão compostas as equipes do Serviço de Inspeção Federal. O novo decreto estabelece três novos atores nas equipes de inspeção e reafirma outros dois. Os já conhecidos são os Auditores Fiscais Federais Agropecuários com formação em Medicina Veterinária (coordenador da equipe de inspeção e sempre obrigatório) e os Agentes de Inspeção Sanitária e Industrial de Produtos de Origem Animal.
Os auxiliares de inspeção cedidos por meio do que estabelece o inciso II do Art. 73 do RIISPOA (Decreto 9.013/2017), não foram citados no novo decreto, mas continuam existindo e a fazer parte da equipe de inspeção.
Os novos atores são os não tão novos médicos veterinários temporários, cuja contratação é permitida pela Lei nº 8745/1993, e contratados por meio de processo seletivo. Esse tipo de contratação já ocorreu por duas vezes, em 2000 e 2017, sempre em casos de emergência como a lei determina.
Outros novos atores, mas também não tão novos assim, são os médicos veterinários cedidos por acordo de cooperação técnica (vulgarmente chamados de ACTs ou conveniados) com governos estaduais e prefeituras que têm interesse em manter abatedouros funcionando em seus territórios, acordos que já ocorrem há mais vinte anos e reconhecidos pelo MAPA como parte integrante das equipes do SIF.
Por último temos os médicos veterinários (esses, sim, novidades) colocados à disposição do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento por meio de contratos a serem celebrados entre o ministério e um serviço social autônomo, que será supervisionado pelo MAPA ou o terá em seu Conselho de Administração ou Conselho Deliberativo.
O serviço social autônomo de que trata o Art. 3º do Decreto nº 10.419/2020 ainda não existe e, portanto, esse novo ator só passará a fazer parte da equipe de inspeção quando uma Lei criar o serviço social autônomo específico para atender às demandas da Secretaria de Defesa Agropecuária – SDA.
Podemos exemplificar como serviço social autônomo o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – SENAI, o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – SENAC, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE, o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural – SENAR, a Agência Brasileira de Promoção de Exportações – APEXBrasil, entre outros, todos com algo em comum: são criados por lei e têm objetivos específicos por ela determinados. Portanto são instituições diferentes das chamadas Organizações da Sociedade Civil – OSC, que vêm substituindo as já conhecidas ONGs, das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP, geralmente associações ou fundações que devem se enquadrar na Lei 9790/1999 e no Decreto 3100/1999, ou das Organizações Sociais – OS, mais envolvidas em ações de ensino e pesquisa.
Portanto pode-se entender que não se trata de uma privatização do Serviço de Inspeção Federal. Em primeiro lugar porque o ente a ser contratado não é empresa, uma cooperativa, ou uma organização da sociedade, mas um serviço social autônomo. Em segundo porque haverá sempre um Auditor Fiscal Federal Agropecuário com formação em Medicina Veterinária na coordenação e executando as atividades de inspeção como os outros médicos veterinários da equipe. Em terceiro porque o MAPA é quem fará a contratação e pagamento do serviço social autônomo e não os estabelecimentos registrados.
Seria então uma terceirização? Talvez de parte da mão de obra, mas com certeza não do serviço de inspeção, pois os servidores concursados continuariam atuando normalmente, mas desta vez auxiliados pelos novos atores citados. Com certeza, a esperança é que o Serviço de Inspeção Federal, instituição com mais de 105 anos, se torne mais robusto e apto a atender às demandas emergentes do agronegócio brasileiro, sempre salvaguardando a saúde pública.
É importante lembrar que algo semelhante já ocorreu entre os anos 70 e 80 do século XX. Sem corpo técnico suficiente e sem concursos públicos, o então Ministério da Agricultura – MA lançou mão da Companhia Brasileira de Alimentos – Cobal (antiga empresa pública de abastecimento ligada ao Ministério da Agricultura que, juntamente com a Companhia de Financiamento da Produção – CPF e a Companhia Brasileira de Armazenamento – Cibrazem, deu origem a atual Companhia Nacional de Abastecimento – Conab), que contratava médicos veterinários, via CLT e processo seletivo, e cedia ao Ministério para execução das atividades de inspeção e fiscalização de produtos de origem animal.
Neste artigo não se pretendeu abordar se essa nova modalidade de contratação afetará ou não a Carreira dos Auditores Fiscais Agropecuários, nem se o decreto em si é ilegal ou inconstitucional. Essas são tarefas para sindicato e para o Supremo Tribunal Federal, respectivamente. Buscou-se aqui contextualizar as motivações e os objetivos do Decreto 10.419/2020, assim como esclarecer algumas dúvidas a respeito do seu texto e de como funcionará o novo modelo de equipe de inspeção.
Modernizar a Inspeção de Produtos de Origem Animal no Brasil não significa privatizá-la ou terceirizá-la, mas em fazê-la mais ágil, menos burocrática, e com foco no risco apresentado pela atividade, mas esse é assunto para outro texto.
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