Modelos causais e intervenções em políticas públicas para enfrentar a fome e a insegurança alimentar

Por Kuruvilla Joseph Abraham, pesquisador, e Alexandre C. B. Delbem, professor, ambos do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da USP; e Antonio Mauro Saraiva, professor da Escola Politécnica da USP

 A insegurança alimentar é um problema global urgente, afetando cerca de 757 milhões de pessoas em 2023, segundo a FAO. No Brasil, essa realidade também é alarmante: dados de 2023 revelam que aproximadamente 27,6% dos domicílios particulares estavam com algum grau de insegurança alimentar.

A recente pandemia, mudanças climáticas, conflitos e desigualdades sociais exacerbam essa crise, tornando a segurança alimentar um desafio multidimensional que requer a atenção e ação colaborativa de todas as áreas do conhecimento para a criação de soluções sustentáveis, inclusivas e que levem em conta a viabilidade da implementação destas soluções.

Projetos multidisciplinares desempenham um papel fundamental para enfrentar este desafio, como, por exemplo, o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) Combate à Fome, liderado pela USP e composto de pesquisadores de outras 22 instituições com diferentes áreas de especialização. Este projeto aborda questões transdisciplinares envolvendo saúde, nutrição, políticas públicas e outros tópicos.

A crescente disponibilidade de dados socioeconômicos representa um recurso valioso para a análise quantitativa do problema da insegurança alimentar. Estes dados, disponibilizados sobretudo pelos governos e por instituições de pesquisa, possibilitam aos pesquisadores explorar uma ampla gama de informações para identificar padrões e tendências. Os resultados destes estudos, por sua vez, podem guiar a implementação de políticas públicas para lidar com o problema da insegurança alimentar. Frequentemente as bases de dados têm origens distintas e desafios significativos de integração, principalmente relacionados à sinergia das informações. A heterogeneidade nos formatos de dados, os atributos e os níveis de granularidade complicam ainda mais a tarefa de integração, padronização e harmonização dos dados de múltiplas fontes. Assim, é essencial utilizar técnicas eficazes de limpeza, validação e imputação de dados, para garantir a consistência e precisão dos dados mesclados. Os aspectos técnicos para realizar estas tarefas, oriundo das áreas de ciência de dados e de inteligência artificial, foram coordenados pelos professores Alexandre C. B. Delbem e Antonio Saraiva.

Os dados analisados referem-se a 38 características socioeconômicas de 96 distritos contíguos no município de São Paulo. Para analisar esses dados, foi proposto o uso de redes rayesianas, uma abordagem estatística que permite modelar efeitos causais e sugerir intervenções. Este método é particularmente útil porque pode lidar com incertezas e fornecer uma compreensão mais robusta das interações e dependências entre diversos fatores de risco.

O alvo de investigação, a insegurança alimentar, não aparece explicitamente na base de dados. Contudo, dois atributos presentes — a densidade de feiras livres e disponibilidade de produtos in natura — podem servir como indicadores da insegurança alimentar. Esses atributos foram mesclados a fim de criar um atributo composto (definido com base nos distritos não dominados em um espaço multiobjetivo). Note que essa composição não requer a atribuição de pesos, assim, independente do conhecimento de especialistas, o que poderia se tornar um entrave uma vez que se usam dados de diferentes áreas do conhecimento. Por conta do baixo número de distritos em comparação com o número de atributos necessários para inferir uma rede bayesiana com confiança, uma escolha de atributos foi realizada, usando um método para detectar a associação com o atributo composto.

No final foram obtidas as cinco variáveis abaixo (entre 36) com maior impacto no atributo composto (por feiras livres e in natura):

  • Número de domicílios;
  • Número de estabelecimentos in naturana base da RAIS;
  • Número de minimercados, mercearias e armazéns;
  • Número de açougues;
  • Número de varejistas de hortifrutigranjeiros.

Esse método de seleção com base no atributo composto possibilitou inferir uma rede bayesiana, que representa como essas cinco variáveis afetam o atributo composto (que pode ser entendido como um proxy de insegurança alimentar). Mais estudos são necessários para confirmar a importância desses atributos e identificar outros. A implementação destes estudos vai exigir o uso de bases de dados mais amplas. Por sua vez, a inclusão de mais bases leva à inclusão de mais indicadores na construção do atributo composto, o que é relativamente simples para a metodologia proposta, que independe de pesos. Como potencial resultado, vamos obter perfis socioeconômicos que melhor caracterizam as diferentes áreas de uma região pelos níveis de insegurança alimentar.

Como impacto social, os resultados oriundos desta pesquisa poderão informar programas de combate à pobreza e direcionar recursos para áreas mais vulneráveis. Além disso, a capacidade de prever níveis de insegurança alimentar a partir de dados socioeconômicos publicamente disponíveis oferece uma ferramenta poderosa para a política pública. Com esses modelos, é possível antecipar áreas que podem estar em risco e tomar medidas preventivas. As políticas públicas têm papel fundamental para lidar com este problema e elas devem fundamentar-se em dados sólidos e análises rigorosas.

* Membros do INCT Combate à Fome: estratégias e políticas públicas para a realização do direito humano à alimentação adequada – Abordagem transdisciplinar de sistemas alimentares com apoio de inteligência artificial
E-mail: inctcombatefome@usp.br

Fonte: Jornal da USP

The following two tabs change content below.
A Revista Higiene Alimentar é uma publicação técnico-científica com mais de 30 anos de existência. Publicada desde 1982, agora somos uma plataforma 100% digital.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *