Por ENIO ANTONIO MARQUES PEREIRA
Ex-Secretário Nacional de Defesa Agropecuária, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
Assessoria da Casa Civil da Presidência da República.
A Ministra Teresa Cristina está anunciando colocar definitivamente em prática a clara responsabilidade dos agentes econômicos pelas garantias das especificações e da segurança dos produtos de origem animal aos seus consumidores. Em outras palavras: o autocontrole.
As repercussões da matéria mostram entendimentos diversos e quase sempre distantes ao que é de fato o autocontrole. Por isso resolvi esclarecer o assunto.
Em primeiro lugar é importante frisar que o autocontrole é uma obrigação legal de quase 30 anos:
tem origem no Código de Defesa dos Consumidores ( lei 8078/90) , bem como em normas dos Ministérios da Agricultura (final dos anos 80) e da Saúde ( anos 90);
tem respaldo na Constituição Federal de 1988 ( artigo 5, inciso XXXII , artigo 170, inciso V e, artigo 48 de suas disposições transitórias);
é um compromisso internacional estabelecido no Acordo sobre a Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias -Acordo SPS – aprovado pelo Congresso (Decreto Legislatico 30/94) e promulgado pelo Presidente da República ( Decreto 1355/94) – de que trata a Ata de Encerramento da Rodada Uruguai de Negociações do Acordo Geral sobre Tárifas e Comércio 1947 (GATT 47) .
Como segundo aspecto relevante, afirmar que o autocontrole não é artificio para terceirizar a administração pública, flexibilizar normas, transferir responsabilidades típicas do governo e muito menos afrouxar os controles por parte dos agentes econômicos:
implica no uso de dados cientificos e na demonstração, permanente e documentada, pelos agentes econômicos, de que as especificações e as garantias dos alimentos por eles produzidos são observadas;
em poucas palavras, o HACCP/ autocontrole uma abordagem universal, sistemática, estruturada e preventiva de identificação de perigos biológicos, químicos e físicos e da probabilidade de sua ocorrência em todas as etapas da produção de alimentos, que define medidas para o seu controle. Tem como objetivo garantir a segurança dos alimentos.
Ainda, por mais surpreendente que possa parecer, o autocontrole não é novidade:
o Serviço de Inspeção Federal-SIF começou a trabalhar com o autocontrole nos anos 70, quando os estabelecimentos habilitados a exportação de carnes enlatadas para os Estados Unidos da América do Norte foram obrigados a cumprir o sistema HACCP- sigla em inglês “hazard analysis critic control points”;
é um método diferente em relação a inspeção tradicional que eleva significativamente o grau de segurança e a conformidade dos produtos;
O autocontrole é simplesmente o controle total da qualidade na cadeia dos alimentos:
nos anos 50 , com a aplicação das teorias da Gestão Total da Qualidade – TQM , em que se deu ênfase aos processos e a visão do sistema de produção de alimentos como um todo , de forma a minimizar os custos de fabrico e melhorar a qualidade dos produtos;
nos anos 60 o conceito de HACCP propriamente dito , foi desenvolvido, pela Pillsbury, nos laboratórios do exército americano e da NASA, para produzir alimentos 100% seguros para os astronautas;
em 1969, o conceito foi consolidado pela Comissão do Codex Alimentarius ao publicar o Código de Práticas em Higiene de Alimentos CAC/RCP 1-1969 com os requisitos do Sistema HACCP;
em 1971, os conceitos PCCs ( pontos críticos de controle) e as Boas Práticas de Fabricação-BPF foram apresentados , pela primeira vez, na National Conference on Food Protection, nos Estados Unidos;
em 1973, o sistema HACCP é adotado nos Estados Unidos nas regulamentações de alimentos enlatados de baixa acidez, na sequência de um incidente de botulismo envolvendo a sopa Bon Vivant Vichyssoise;
em 1980 o Codex Alimentarius recomenda a aplicação de sistemas de autocontrole baseados nos princípios HACCP.
O autocontrole ganhou espaço, no mundo, em especial nos anos 80 e 90, como resposta efetiva às sucessivas crises de confiança dos consumidores nos alimentos:
em 1983 , o Brasil registrou um caso de morte por consumo de pate contaminado com toxina botulinica. Isso levou a criação de uma Comissão Interministerial Saude e Agricultura-CISA e a adoção de várias medidas preventivas preconizadas pelo Codex, na linha do HACCP. As ressolucoes CISA foram precusoras do prazo de validade, informações rotulos, temperaturas a serem observadas no transporte e exposição, serviço de atendimento aos consumidores, entre outras;
a partir de 1986, na rodada de negociações Uruguay do Gatt, esse assunto foi muito discutido, culminando com um acordo específico sobre medidas sanitarias e fitossanitárias;
em 1993 , nos Estados Unidos, ocorreu um dos surtos mais marcantes de doenças transmitidas por alimentos, envolvendo a contaminação do hambúrguer da rede Jack in the Box pela bactéria Escherichia coli sorotipo 0157:H7. Este surto atingiu cerca de 700 pessoas, em quatro estados, sendo a maioria delas formada por jovens e crianças, incluindo quatro que morreram.
O autocontrole é, definitivamente, uma estratégia mundial consagrada:
em 1993, o HACCP entra oficialmente nas legislações dos Estados Unidos da América e da União Européia, passando a ser obrigatório em diversas categorias de produtos como pescados, frutos do mar, produtos carneos e bebidas;
diversos paises, inclusive o Brasil, seguiram essa tendência;
no Brasil enquanto o MAPA estabelecia as normas e procedimentos para implantação do sistema HACCP para pescados , a Portaria 1428/93 do Ministério da Saúde estabelecia os procedimentos para a implantação do HACCP nas indústrias de alimentos em geral;
a partir de 1995, com a entrada em vigor do Acordo SPS , o autocontrole torna-se obrigatório nos países signatários dos acordos administrados pela OMC.
O acordo SPS reforça o autocontrole:`
empodera a OMC e os organismos reguladores OIE, CIPP e Codex;
estabelece a avaliação dos riscos ( risk assessement ) para identificar os perigos reais e potenciais;
lança o nível adequado de proteção (adequate level of protection- alop) para estabelecer o grau de Segurança desejado, ou seja quais os perigos que serão gerenciados em determinados produtos;
cria um organismo na OMC para o companhamento da implantação do acordo.
A avaliação dos perigos é a principal ferramenta para:
para identificar e conhecer em profundidade os perigos reais e potenciais e como eles funcionam;
a partir desse conhecimento estabelecer as melhores formas para: i) a gestão ( medidas para impedir o contato do perigo com os suscetíveis); ii) a comunicação ( papel que cabe a todos os envolvidos com o perigo);
garantir que os perigos considerados relevantes não gerem danos ( riscos) .
O conjunto envolvendo as 3 etapas- avaliação, gerenciamento e comunicação dos riscos- é a Análise dos Riscos- Risk Analysis .
O auto controle tem nas iniciativas Estados Unidos e União Européia o benchmark que os paises seguem:
em janeito de 1977 , o Presidente Clinton lança a iniciativa do alimento seguro da fazenda ao garfo dos consumidores e seguido da ação do Food Safetty Inspection Service – FSIS que lança as bases da da inspeção com base em riscos , que passou a ser referência para as indústrias em todo o mundo;
em abril de 1997 a União Européia publica o Livro Verde com as bases para rediscutir o aprimoramento da legisação do controle dos alimentos nos paises da Europa;
em janeiro de 2000 o Parlamento aprova o Livro Branco com os compromissos e iniciativas para a adoção da estratégia do alimento seguro do campo a mesa;
em 2002 o Regulamento (CE) Nº 178/2002 determina os princípios e normas gerais da legislação alimentar, estabelece procedimentos em matéria de segurança dos géneros alimentícios para efeitos da sua colocação no mercado e cria a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA). Interessante o artigo de Graça Mariano e Miguel Cardo, da Direcção de Serviços de Higiene Pública Veterinária da DGV de Portugal, que resume bem o quadro das normas UE .
Nem todos sabem que, não só pelas exigências de terceiros mercados, a experiência da indústria e do comércio no Brasil no uso do autocontrole /HACCP é muito rica e com grande exito:
em 1998 surge o Projeto APCC ( sigla do HACCP em português Análise de Perigos e Controle dos Pontos Críticos) liderado inicialmente por um acordo entre o CNI, SESI e SEBRAE para capacitar técnicos em Boas Práticas de Produção e no sistema HACCP;
em 2002 houve a mudança do Projeto APPCC para o Programa do Alimento Seguro- PAS com envolvimento de todos os demais ESSEs e a EMBRAPA, com a participação e apoio do MAPA e da ANVISA;
o PAS evoluiu como um Programa do campo à mesa, composto de cinco setores: PAS-Campo, PAS-Indústria, PAS-Distribuição, PAS-Transporte e PAS-Mesa com alcance em todo o pais ( Ver monografia de estudante de medicina veterinária em 2007 e ver monografia de Paulo Bruno de 2010 sobre a experiência do Sistema S no alimento seguro).
A dinâmica do processo chamou outras iniciativas para materializar a estratégia do auto controle/ HACCP em todas as etapas do ciclo de produção:
em 2001 a ISO constituiu diretrizes para a aplicação da norma ISO 9001 especificamente em industrias de alimentos e bebidas, atraves a norma ISO 15.161: 2001;
em seguida a ABNT publicou a Norma NBR 14.900 baseada nos principios do HACCP, incorporando elementos da ISO 9001 e da ISO 15161;
em 2003 a Comissão do Codex publica a revisão do Código de Práticas de Higiene de Alimentos- CAC/RCP 1-1969 em que alguns requisitos do HACCP foram complementados para aumentar a abrangência da aplicação do código;
em 2005 com a publicação da Norma ISO 22000 , referente a requisitos do sistema de gerenciamnento da Segurança dos Alimentos, muda a cara do HACCP, expandindo seus conceitos e incorporando-o a um sistema de gestão construido com base no ciclo PDCA de melhoria contínua.
Com isso estão integrados os requisitos de gestão, as Boas Praticas de Produção, o HACCP, o Acordo SPS ( normas dos organismos reguladores) e as normas da série 22000 da ISO:
essa integração é a base para organizar o sistema de garantia da qualidade/ autocontrole como um sistema científico , documentado e auditável, para a demonstração permanente do cumprimento das especificações e do nível adequado de proteção/segurança dos produtos. O autocontrole é parte do dia a dia das organizações que têm como objetivo estratégico a produção de alimentos realmente seguros para os seus consumidores;
esse sistema permite elevar o nível de proteção geral aos consumidores em todo o mundo, bem como amplia a concorrência, a oferta e a qualidade dos produtos ao tempo em que organizam os mercados agropecuários;
as políticas públicas passaram a ser desenhadas por esses parâmetros internacionais, cabendo aos governos as definições das normas para higiene, limites máximos para perigos reais ou potenciais relevantes, prerequisitos para o sistema de garantia da qualidade, redes de suporte analíticos credenciada, e , em especial , como monitorar e verificar a conformidade do sistema de garantia dos agentes econômicos (controle do autocontrole).
como síntese, medidas sanitárias e fitossanitárias estabelecidas com base em dados científicos, aplicadas em todos os elos dos agentes envolvidos da fazenda aos consumidores , inclusive nesses últimos, com a clara responsabilidade de quem produz frente ao seus consumidores ( através de sistemas de garantia da qualidade) , com a rastreabilidade dos produtos, no conceito passo à frente e passo atrás, para garantir a substituição de produtos defeituosos e, por fim, o direito aos consumidores à educação e informação sobre os produtos e os controles.
Mesmo assim, os casos de contaminação dos alimentos podem acontecer acarretando injurias à saúde das pessoas. Contudo, com as novas práticas, em especial a documentação dos processos, a vigilância sanitária e as medidas corretivas são mais tempestivas e é possível identificar com relativa precisão o fato que deu origem a não conformidade.
No novo ambiente, com base nas estatísticas, pode-se verificar mudanças positivas na epidemiologia das doenças transmitidas pelos alimentos, com forte diminuição dos surtos de largo espectro e, também, nos casos decorrentes da manipulação inadequada dos alimentos nos domicilios e nos serviços de alimentação.
Para corroborar com essas observações aproveito para citar, como exemplo, a “crise operação carne fraca” , que acarretou danos à reputação de empresas e mesmo do governo. Sem entrar no mérito da gestão da crise, para a surpresa de muitos, afirmo que os produtos implicados no caso não geraram, diferentemente dos surtos já ocorridos no mundo, riscos sistêmicos à saúde dos consumidores:
o SIF estabeleceu regime especial de controle, analisou minuciosamente os registros dos autocontroles, checou as amostras de lotes produzidos no período e nada encontrou em relação a risco de contaminação;
vários paises consumidores enviaram missões de verificação sem o encontro de situação que pudesse ensejar evidência de risco;
foram identificados fatos graves de não conformidade dos produtos em relação às especificações contratadas;
a gestão da crise encaminhou reestablecer ao DIPOA a governança sobre as operações do SIF;
isso demonstra: i) a robustez e a relevância do HACCP/autocontrole / sistema de garantia da qualidade, ii) a necessidade de ajustes no modelo, em especial, a obrigatoriedade de “compliance” e certificação de terceira parte no sistema de garantia, bem como a nomeação de diretor estatutário por essas responsabilidades.
Os avanços nos modelos de autocontrole seguem, tendo como novidade mais recente a intensificação do uso de sistemas voluntários de certificação de qualidade. Muitos países, a exemplo da União Européia , já dispõe de instruções oficiais sobre isso.
Por fim, é importante esclarecer que:
o autocontrole não pode ser confundido com a inspeção ante e post-morten, que no modelo SIF é obrigação oficial;
o autocontrole tem por contrapartida obrigações do governo no controle dos agentes privados, segundo protocolos específicos, com base em risco, aplicados por autoridade pública autônoma ( controle do autocontrole);
a permanente demonstração pelos estabelecimentos de produtos de origem animal do cumprimento das normas e exigências brasileiras e, na dependência de seus mercados, de terceiros países, constitui prática centenária que continuará “ad infinito”;
a novidade, após o complexo HACCP, Acordo SPS, série ISO 22.000 é a forma pela qual essa demonstração passou a ocorrer, não mais sob a exclusiva responsabilidade do governo;
é recomendavel usar HACCP / autocontrole/ sistema garantia qualidade para que a já “velha” abordagem fique mais clara, compreensível e menos sujeita a especulações e interesses corporativos.
Isto posto, a expectativa sobre o “HACCP aprimorado” segue positiva e o aporte de tecnologias acessórias permitirão realizar o autocontrole/ haccp/ sistema de garantia da qualidade e o seu controle pelo governo sem dificuldades: a internet das coisas, plataformas digitais, inteligência artificial, métodos rápidos de diagnósticos, protocolos privados , responsabilidade técnica, responsabilidade estatutária, verificação da conformidade por terceira parte, entre outras.
Bibliografia:
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Códigos de Práticas em Higiene de Alimentos CAC/RCP 1-1969
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BOA NOITE GOSTARIA DE PARTICIPAR DO CURSO DO DIA 23.24/11 SOBRE AUTOCONTROLE
Bom dia Izabel,
Para essa turma as inscrições estão encerradas, mas abriremos para fevereiro. Assim que tudo certo colocaremos no site.
Att.
Parabéns Ênio por resgatar importantes fatos do tema e que constituem a base para o status atual. Auto controle nao é novidade nenhuma para quem acompanhou esta história no Brasil. O APPCC ainda constitui a base para o fortalecimento deste ou qualquer outro sistema conhecido para a segurança alimentar. Solange Medeiros