O tempo e o alimento têm balizado, entre outras variáveis, a vida do homem no planeta, marcando sua evolução e frustrações, ao longo dos séculos. Desde as primeiras sedentarizações humanas, ocorridas no Egito, na Babilônia e na China, bem antes da era cristã, houve a necessidade de um conhecimento mais profundo do tempo, a fim de melhor administrá-lo, no sentido de planejar o plantio, a colheita e a distribuição dos alimentos. Afinal, essa misteriosa entidade, que ao homem foi permitida apenas a medição, tanto que o nosso Drummond rotulou de gênio quem conseguiu “fracioná-lo” e, assim, “industrializar a esperança”, nos cerca diuturnamente, nos acompanha em tudo o que fazemos. Mas é sobre o alimento e a alimentação que mais interfere no tempo. Se é verdade que a produção, a industrialização e a distribuição de alimentos exige tempo suficiente e precioso para acontecer, é mais verdade ainda que o homem condicionou sua alimentação à disponibilidades de tempo e, mais verdade ainda, que hoje se vive numa sociedade em que o tempo domina todas as ações, das mais simples às mais complexas.
Em síntese, enquanto nos primórdios do homem sobre a terra o tempo era consumido procurando alimento para a sobrevivência, a tecnologia de produção permitiu que a alimentação passasse a ocupar uma posição mais segura, mais aprazível, permitindo ao homem se dedicar a outras atividades, embora passasse a alimentação a sofrer influências da própria sociedade, como a religião, a cultura, a economia, a política, e tantos outros fatores. E a que ponto chegamos, com o tempo e a tecnologia até hoje empregados? No dizer de especialistas, a uma alimentação que é a resultante de um mixer de culturas, puras e adulteradas, provenientes de sociedades que evoluíram para a globalização, num processo integrativo, mas muitas vezes conflituoso. Os antropologistas costumavam reconhecer, mas muito mais agora, que os movimentos migratórios são agentes de alterações alimentares, quer na culinária, quer na dieta, sempre modernizando e aculturando.
Passou o tempo (esse ente inexorável!) e sucederam-se a divisão social do trabalho entre homens e mulheres, a associação entre saúde e alimentação, o núcleo familiar como proteção social, o prestígio da alimentação familiar, a necessidade de integração da mulher ao mercado de trabalho, mormente durante a primeira e segunda guerras mundiais. Mas a mulher fora do lar provocou o declínio do modelo tradicional de família e levou a uma nova estrutura, na qual o tempo dedicado às tarefas domésticas tornou-se menor, influenciando diretamente o tempo que o homem destinava à alimentação. Entretanto, as mudanças dos hábitos alimentares não devem ser atribuídas unicamente aos fatos elencados. Na verdade, a ascenção crescente da indústria, da ciência e da tecnologia, e do mercado consumidor no século passado, traduzidos pela produção em escala de alimentos, no uso da biotecnologia, no desenvolvimento de novos materiais de embalagem na adequação dos meios de transporte e conservação e, acima de tudo, nas novas concepções de gestão da qualidade, segurança e certificação dos alimentos, foram fatores primordiais para cristalizarem um novo conceito de alimento e alimentação. Isto tudo num mundo globalizado, no qual hierarquizamos o tempo para cada atividade, dedicamos um mínimo dele para o prazer da nossa alimentação e em que prestamos um culto soberano à velocidade.
No limiar de uma nova década, o que esperar do futuro, em relação à produção e ao consumo de alimentos? Primeiro, a constatação de que a escassez de alimentos continuará, infelizmente, para os países sem recursos para produzi-los ou importá-los, uma vez que há muito tempo se comprovou ser este um problema meramente econômico, num mundo tecnificado e globalizado. Segundo, os países compradores serão cada vez mais exigentes com a qualidade e a segurança higiênica e sanitária dos alimentos adquiridos. Terceiro, os países aptos a produzi-los, além da competição mais renhida que deverão enfrentar, estarão sujeitos a novos desafios para a produção desses alimentos, particularmente relacionados ao bem-estar animal, à sustentabilidade e à defesa do meio ambiente.
É sempre alentador imaginar que a tecnologia buscará as respostas para estes desafios. A incógnita é saber se tais respostas chegarão no tempo adequado. Mas, acima de tudo, o que fazer para frear as escolhas alimentares incutidas à sociedade pela chamada “escassez de tempo”? Na vida acelerada de hoje, o mercado proporciona satisfação com refeições rápidas, nutricionalmente pobres e densas em calorias, ignorando os aspectos sociais e emocionais da alimentação, com repercussões visíveis à saúde. O reconhecido aumento da prevalência da obesidade e de um grande número de doenças crônicas não transmissíveis, a ela associadas, como diabetes e doenças cardiovasculares é, atualmente, consequência direta dessa escolha.
A ingestão automatizada de alimentos, sem ritmo, sem controle, sem horário, sem prazer, altera aspectos fisiológicos do indivíduo, como a saciedade e o apetite, trazendo-lhe inúmeros transtornos à saúde. E o círculo se fecha com ofertas vistosas, acessibilidade, divulgação dirigida, publicidade e marketing, vitimizando crianças, adultos e idosos (e a própria alimentação saudável!). O resultado são os preconceitos alimentares, responsáveis por impor a restrição de determinados alimentos, sem qualquer base científica, ditada apenas pela popularidade, pelo modismo”. Agora, não nos esqueçamos que tudo se originou da percepção de “escassez de tempo” e da necessidade de hierarquizar as inúmeras atividades humanas, levando à depreciação do ato de se alimentar corretamente. O que fazer, portanto, se os modelos alimentares são os mesmos no mundo todo, incluindo países desenvolvidos e em desenvolvimento, se as condições socioeconômicas dos países não demarcaram a diferença, se a globalização levou às alterações de estilo de vida e de alimentação a todos, fundindo cultura e aculturação, se o padrão alimentar generalizou-se e o tempo é o mesmo para todos?
Fazem-se necessárias novas políticas de produção de alimentos, que reformulem e reestruturem o tempo, de modo não somente de garantir a sobrevivência, mas de forma a devolver ao homem o prazer pela alimentação, aquele prazer sem culpa, sem medo, sem pecado. As sociedades já começam a responder com medidas de prevenção à saúde das populações, buscando novas estratégias que atendam aos anseios do homem moderno. Semeiam-se já, em várias partes do mundo, políticas de reorganização urbanística, a fim de diminuir o sedentarismo e limitar o acesso às ofertas vistosas da restauração fast food, recorre-se à fortificação de alimentos para enfrentar carências nutricionais, financiam-se investigações no sentido de encontrar respostas alimentares adequadas, atua-se, enfim, em nível de educação e intervenção alimentar da populações.
Tudo isso, porém, será suficiente para enfrentar às demandas das próximas décadas? Por certo, não. Será preciso ainda atentar para as produções primárias de alimentos, no sentido de que sejam seguras, nutricional, higiênica e sanitariamente; de que a industrialização e a distribuição não elevem demasiadamente os preços dos produtos finais; de que sejam acessíveis às populações, mormente as de baixa renda; de que respondam aos anseios éticos das populações e respeitem suas culturas. Com certeza, a tecnologia dará suas respostas e, com um pouco de sorte, no momento certo. Será preciso que a indústria reformule sua conduta em relação a algumas questões e o próprio homem se conscientize de que uma grande parcela de responsabilidades cabe a ele.
À indústria caberá rever alguns processos de produção e, com isso atender, de modo definitivo (e não paliativo), os anseios do consumidor quanto a ética de produção de alguns produtos, como a produção de ovos de consumo (galinhas presas em gaiolas até a morte), de suínos (proibição de gestação em gaiolas), de frangos (proibição de altas densidades de animais), afinal tudo o que possa atentar contra o bem–estar dos animais de produção, com a sustentabilidade e com a manutenção da saúde do ambiente.
Do homem, espera-se uma mudança geral de atitudes em relação ao alimento e ao tempo:
1) que se conscientize da realidade de que a alimentação não é somente um fator de sobrevivência mas, antes de tudo, de um prazer, e que sua saúde depende desse conceito;
2) que use a solidariedade não somente nas palavras mas, sobretudo, nos atos com o seu próximo, mormente quando este seja carente de alimentos;]
3) que evite o desperdício no seu dia-a-dia (afinal, desperdiçar alimento não é somente responsabilidade da indústria e do campo, quando não conseguem estocar, conservar ou colher corretamente, mas é também do consumidor quando devolve alimento no prato, por ter se servido exageradamente);
4) que prestigie o pequeno produtor rural, a pequena indústria rural, pois são elos importantes da grande cadeia produtora de alimentos. Estará com o governo a responsabilidade de fiscalizar esta pequena indústria e permitir que funcione, desde que cumprido o mínimo necessário no que respeita às condições higienicossanitárias.
(Baseado em “O homem, a sociedade, o tempo e a alimentação”, de Alda Jorge Rodrigues Alvim e Maria Daniel Barbedo Vaz Ferreira de Almeida, da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto, Portugal; e de Maria Clara Pignatari Rosas Calvi Rosa, Renata Rago Frignani e Juliana de Toledo Grazini dos Santos, da Verakis – Mediação da Ciência da Nutrição, Paris, França.)
Por: José Cezar Panetta – Editor da Revista Higiene Alimentar, Professor titular aposentado da Faculdade de Veterinária da USP. jcpanetta@higienealimentar.com.br
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