A margem para a União Europeia (UE) barrar importações agrícolas procedentes do Mercosul, pelo acordo de livre comércio anunciado na sexta-feira, já causa divergências de interpretação. Ilustra a dificuldade que os dois blocos terão na redação jurídica final do tratado, ao longo dos próximos meses, e na ratificação mais tarde pelos parlamentos.
Uma divergência é sobre o alcance do “princípio de precaução”, um instrumento que o Brasil recusou durante anos nas negociações, mas teve que ceder na reta final quando Bruxelas fixou como condição para ter o acordo. A UE advertiu que, sem princípio de precaução tampouco haveria cláusula autorizando o drawback, regime especial aduaneiro que garante desoneração na importação ou aquisição interna de insumos utilizados na fabricação de bens voltados para a exportação e que é essencial para o Brasil.
“O princípio de precaução está consignado no texto, preto no branco”, comemorou o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, ao anunciar o acordo à margem do G-20 em Osaka, Japão, diante de um Jair Bolsonaro que parecia visivelmente desconfortável sobre o que lhe era traduzido por seu intérprete.
Documento publicado pela UE sobre o acordo, em seu site, “reafirma o princípio de precaução e o direito dos dois lados de adotar medidas para proteger a saúde humana, animal e de plantas, incluindo em situações onde informação científica não é conclusiva”.
Já a interpretação do Brasil é de que o princípio de precaução negociado se refere apenas a meio ambiente e segurança no trabalho. “O princípio de precaução está incluído no capítulo de desenvolvimento sustentável e não nos capítulos de barreiras técnicas ao comércio (TBT) e medidas sanitárias e fitossanitárias (SPS)”, afirma o secretário de Negociações Bilaterais e Regionais nas Américas, embaixador Pedro Miguel Costa e Silva. “Foi tudo negociado para blindar o Brasil contra um uso inadequado desse instrumento.”
O lado brasileiro estima que, com a linguagem adotada no texto, inverteu o ônus da prova para o lado europeu demonstrar que precisa daquela medida provisória barrando importações agrícolas.
A Europa já adota medidas de precaução sem a devida base científica para proteger seu mercado — com ou sem acordo comercial. Mas para o especialista Pedro de Camargo Neto “faltou precaução [do Brasil] para uma questão que sempre foi de princípio para a agricultura brasileira”.
A outra grande divergência logo após o anúncio do acordo é sobre uma cláusula de salvaguarda adicional para barrar produtos agrícolas. “É a primeira vez que se aplica isso num acordo comercial”, disse o presidente francês Emmanuel Macron, chamando para si a vitória. “Em caso de desestabilização de um setor [pelo surto de importação], a UE pode deflagrar o mecanismo para suspender a abertura comercial. É importante para pilotar a aplicação real do acordo.”
Para o Brasil, porém, essa cláusula caiu durante a barganha, e não entrou no acordo. O que tem é a mesma salvaguarda que está sendo negociada em outros acordos comerciais. É uma salvaguarda geral, pela qual se suspende a preferência dada pelo acordo se houver um surto de importação, mas não tem salvaguarda adicional para produtos agrícolas”, diz um importante negociador brasileiro.
As autoridades europeias festejaram também a inclusão no acordo do respeito explícito do Acordo de Paris de combate a mudanças climáticas. Para Macron, isso ocorre “pela primeira vez num acordo comercial. A verdadeira mudança na reta final foi que o Brasil se engajava no Acordo de Paris e na luta pela biodiversidade.”
Para Juncker, as bases do acordo amarram o Brasil com o compromisso de efetiva implementação do Acordo de Paris e parar o desmatamento da Amazônia.
“Política comercial se tornou um instrumento para política climática”, martelou Juncker, enquanto suas palavras eram traduzidas para Bolsonaro, posicionado próximo da chanceler alemã Angela Merkel e Macron, que apontaram antes do acordo perigos à política ambiental no Brasil.
Já negociadores do Mercosul consideram que o Brasil não cedeu em nada, porque não era necessário. O país assinou o Acordo de Paris e sabe que tem de cumpri-lo, apesar da retórica inicial do presidente, já superada por ele mesmo.
A UE lembra que o compromisso do Brasil pelo Acordo de Paris inclui reduzir até 2025 suas emissões líquidas de gás de efeito estufa em 37% comparado aos níveis de 2005, e ações para pôr fim ao desmatamento ilegal. Para alguns negociadores, o Brasil cumprirá as metas facilmente. A UE por sua vez deve reduzir suas emissões domésticas em pelo menos 40% até 2030.
Macron faz barulho para agradar seu eleitorado rural e não admitir que saiu de mãos vazias, avaliam observadores. A poderosa central agrícola europeia Copa Cogeca tem a mesma suspeita. “Bolsonaro pode louvar o trabalho de seu time negociador”, disse Pekka Penonsen, secretário-geral da entidade, ao reclamar de concessões europeias para o Mercosul.
Mas os europeus concordam sobre os ganhos na proteção de suas indicações geográficas. “É o acordo que reconhece nossas indicações geográficas como nenhum outro fez antes”, segundo Macron. Para Copa Cogeca, o sistema europeu de indicações geográficas foi reconhecido com sucesso, e o acesso a alguns produtos processados obtido. Mas se queixa que a Comissão Europeia fez concessões demais em setores sensíveis como carne bovina, açúcar, etanol, arroz e suco de laranja.
A França já anunciou que vai fazer uma “avaliação independente” do acordo com o Mercosul, sobretudo em áreas de meio-ambiente e biodiversidade. A Coga Cogeca promete muita mobilização nos próximos meses para o que chama de mitigar os impactos negativos do acordo com o Mercosul.
Como o acordo tem um capítulo político, terá de ser submetido aos parlamentos nacionais, e, no caso da Bélgica, aos parlamentos regionais também. Esses parlamentos regionais belgas provocaram uma profunda crise política ao se recusarem dar ao governo federal plenos poderes para assinar em nome da Bélgica o acordo UE-Canadá. Julgavam que não havia garantia suficiente de proteção de normas europeias sanitárias, fitossanitárias, sociais e ambientais, além de uma cláusula de proteção de investimentos contestada. O governo belga teve que recorrer à Corte de Justiça da União Europeia para poder assinar o acordo.
Fonte: Milk Point / MAPA.
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