Com 99% de aproveitamento, a pecuária brasileira é referência mundial em reciclagem animal e produtividade
Um ditado popular avisa que do boi só não se aproveita o berro. Coisa do passado. Hoje, até o berro é reaproveitado. “Tem muita gente que reproduz esse som na buzina dos carros”, festeja Décio Coutinho, presidente da Associação Brasileira de Reciclagem Animal (ABRA), que reúne mais de 140 indústrias responsáveis pelo reaproveitamento dos resíduos do abate no país.
Evaristo de Miranda, chefe da Embrapa Territorial, instituição da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, informa que, entre 2016 e 2019, o Brasil matou a cada ano, em média, 39 milhões de bovinos, 37 milhões de suínos, 3,2 milhões de ovinos e caprinos, 6 bilhões de frangos. Também produziu aproximadamente 700 milhões de toneladas de peixe. A carne para consumo humano de cada animal, entretanto, varia entre 50% e 60%. O que acontece com os 40% a 50% restantes?
Seriam necessários mais de mil novos lixões e aterros sanitários apenas para receber os resíduos com os quais a ABRA trabalha caso fossem simplesmente descartados. Isso tornaria quase inviável o sistema de abate em larga escala. Um bovino em decomposição, por exemplo, libera em média 1,2 tonelada de gás carbônico. Miranda calcula que o volume de coprodutos reciclados anualmente pela indústria brasileira seja suficiente para preencher dois Maracanãs.
“Além da carne, os derivados do boi geram matéria-prima para abastecer cerca de 55 segmentos da indústria, de comestíveis a produtos farmacêuticos”, explica Miranda. “Se existe um exemplo de economia circular no Brasil, ele está na pecuária. A meta é chegar a um modelo econômico com zero resíduo.”
A reciclagem animal reaproveita 99% do material que seria desprezado por frigoríficos, abatedouros, açougues e supermercados. São gorduras, restos de carne, penas, sangue, escamas, cascos e chifres, que, transportados em menos de 24 horas para as indústrias responsáveis, resultam em farinhas para ração, fertilizantes, adubos e gorduras que geram biodiesel, sabão, tintas, cosméticos, pneus, suplementos e muito mais.
“É uma indústria que também se autoalimenta”, observa Décio Coutinho. “Parte da ração produzida com o material reciclado é usada como alimento para os próprios bichos que mais tarde serão abatidos.” A exceção está nos bovinos, que, por lei, não podem ser alimentados com farinha de origem animal.
Com a utilização das farinhas e gorduras animais, o Brasil foi dispensado de plantar 2,1 milhões de hectares de milho e soja, consumir 1 milhão de toneladas de adubo, utilizar 12 bilhões de metros cúbicos de água e gastar R$ 800 milhões em defensivos agrícolas.
“A reciclagem animal começou há mais de cem anos, quando nossos avós e bisavós ferviam a gordura com soda cáustica para produzir sabão”, conta Coutinho. “Hoje, 13 milhões de toneladas de matéria crua são transformadas em 5,6 milhões de toneladas de produtos.” Grande parte do que sobra é água, que pode ser reutilizada nas próprias fábricas ou tratada e devolvida limpa para o meio ambiente.. “A reciclagem animal converte esses restos com alto potencial poluidor em produtos padronizados ricos em proteínas e minerais”, resume. “Somos responsáveis pela sustentabilidade da pecuária brasileira.”
O reaproveitamento acontece por meio do chamado upcycling — o processo consiste em reaproveitar materiais que seriam descartados para criar outros produtos, de qualidade frequentemente superior à dos originais. Em 2019, por exemplo, quase 15% do biodiesel brasileiro foi produzido a partir de gorduras animais (sebo bovino, gordura suína e óleo de aves). Farinhas de ossos, sangue e vísceras são a base de rações para pets. Dos cascos (são mais de 150 milhões por ano) e chifres dos bois também é extraído o colágeno, empregado em medicamentos e no tratamento da flacidez. Quase 90% dos cosméticos usam gordura animal em sua composição.
“Quando se considera o que os frigoríficos pagam pelo boi e o que ganham com a venda de carne, muitas vezes o resultado é negativo”, escreveu Evaristo de Miranda no livro Tons de Verde. “Boa parte dos lucros, na verdade, vem da comercialização dos subprodutos.”
Maior produtor de proteína animal do mundo, o Brasil tornou-se um exemplo também nos processos de reaproveitamento dos resíduos do abate, o que confere sustentabilidade à pecuária brasileira e gera 54 mil empregos diretos. Embora tenha movimentado US$ 115 milhões em 2019, o mercado exportador desses produtos ainda é um gigantesco universo a ser explorado. Hoje são destinados ao consumo interno mais de 95% da produção. Outros grandes produtores são a Austrália, os Estados Unidos e a Argentina.
Por causa da pandemia do novo coronavírus, foram canceladas diversas feiras internacionais que poderiam abrir mercados. Mas o setor funcionou a pleno vapor. Neste momento, quatro projetos de pesquisa são desenvolvidos em parceria da Abra com a Embrapa. Décio Coutinho anima-se: “Podemos ter um diamante ainda desconhecido dentro de algum resíduo”.
Fonte: Branca Nunes / Publicado na Revista Oeste
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