Para os comensais brasileiros o bife à cavalo é um prato composto por carne de vaca e um ovo por cima. Mas, atualmente, este prato tem sido usado para parodiar o escândalo da carne de cavalo, que se tornou público na Europa no início do mês de fevereiro. O assunto virou manchete de todos os jornais de grande circulação na Europa e no mundo, mobilizou governos, especialistas e, sobretudo, perturbou o mercado e os consumidores.
Num sábado, 09 de março de 2013, um mês após conhecimento público do problema, o jornal das 20h, da France 2 Télévision, anunciou que desde que a fraude da carne equina fora revelada, todos os dias se descobria um novo incidente a respeito.
Grandes , médias e pequenas indústrias, pequenos, médios e grandes distribuidores foram afetados. O único laboratorio francês, capaz de identificar o DNA dos produtos alimentícios, para verificar a existência de carne de cavalo em produtos processados, sobrecarregado de serviço, passou a receber inumeros pedidos de análise todos os dias, confirmando finalmente a presença de carne de cavalo na maioria dos produtos analisados.
Dentre as numerosas machetes, O escândalo da carne de cavalo se propaga, Águas turvas no setor de carnes, Frigoríficos Spanghero e outros envolvidos, Alimentação: a crise da confiança, a última espelha bem a desconfiança do consumidor no setor agroalimentar e no governo, já que a este cabe a responsabilidade de auditorar o sistema. Embora o consumidor seja, ainda, relativamente inocente e crédulo e ainda confia piamente nas informações que lhes são transmitidas, ele começa a analisar mais concretamente a seriedade do setor, particularmente quando os desvios tecnológicos cometidos têm como escopo o aumento dos lucros das empresas. Está-se, agora, num terreno que envolve, exclusivamente, o respeito ao consumidor.
O consumo de produtos à base de carne bovina tem diminuido bastante na França e este escândalo perturbou bastante o setor. Segundo o jornal La tribune , “entre os dias 11 e 17 de fevereiro, a venda de pratos congelados à base de carne bovina, diminuiu 45% nos grandes supermercados, uma semana após a revelação do escândalo, segundo uma pesquisa publicada pela Nielsen… Em volume, foram 300 toneladas a menos vendidas na França, com relação ao ano anterior, no mêsmo período”. Estes dados mostram que o consumidor se sentiu traido, desrespeitado e receoso quanto ao tipo de carne que ingere e, prontamente, reagiu.
Ora, do ponto de vista da qualidade nutricional da carne de cavalo, nao há muito o que se dizer, ela tem uma composição muito parecida com a carne bovina, e a nítida diferença está na quantidade de gorduras, proteina e ferro; a carne de cavalo é mais magra e mais rica em ferro. Do ponto de vista sensorial, a carne de cavalo tende a ser menos macia, mais escura e, dependendo da preparação, apresentar odor mais marcante.
Com relação aos aspectos sanitários, pode-se questionar eventualmente as condições da matéria-prima, da industrialização e do rastreamento da carne, caso não sejam atendidos os preceitos tecnológicos e higiênicos estabelecidos pelas autoridades. Entretanto, caso sejam respeitados, não há porque pensar-se em risco à saúde do consumidor, pois o produto é absolutamente adequado ao consumo humano. Tanto, que muitos paises europeus importam (do Brasil, por exemplo) e consomem normalmente esse tipo de carne. O problema, nesse caso, não está em quaisquer dúvidas de caráter sanitário e, sim, está relacionado à quebra de confiança do consumidor com o setor industrial e com o governo, já que a este cabe fiscalizar, oficialmente, aquele.
Simplesmente, sentiu-se traído o consumidor. Incomodou-o a presença de carne de cavalo em sua lasanha congelada. E, por quê? Porque hábitos alimentares são construidos sobre bases cultural, social e emocional muito fortes e marcantes e, segundo elas, se em determinado momento um alimento tradicional for considerado não comestível, passar a ingerí-lo de maneira consciente representará uma violência para o ser humano e um ataque ao respeito e à individualidade de cada um. Assim, para algumas comunidades, o consumo de certos tipos de carne, provindos especialmente de animais para os quais devotam respeito e consideração (ligados a sua cultura), suscita, de maneira mais ou menos evidente, o sentimento de culpa. Cometer esse crime, de maneira inconsciente e provocado por outrem, incomoda-as. É certo que existe um mercado para a venda de carne de cavalo para consumo humano, mas quem não faz parte desse mercado sentia-se, até as denúncias, protegido pelo governo e respeitado pelo setor agroalimentar.
O impacto da denúncia é sempre muito maior do que o das explicações. O que ocorreu, afinal? Falha no esquema de controle, higiene e segurança dos alimentos na CEE (Comunidade Econômica Européia); armadilha mercadológica, ganância de alguns negociadores? O fato é que o consumidor foi, como na maioria das vezes, a maior vítima. Por exemplo, famílias com baixa renda, que consumiam esses pratos congelados como fonte de proteina animal, deixaram de fazê-lo.
Sob um ponto de vista positivista e seguindo o discurso dos especialistas em nutrição portugueses, segundo os quais a crise econômica em Portugal será uma ótima oportunidade para melhorar os hábitos alimentares da população, parte da qual, por ter menor poder aquisitivo será obrigada a prestar mais atenção com sua alimentação. Pode-se imaginar, então, que esta crise possa servir para que o consumidor seja mais atento àquilo que compra para comer e que os especialistas reflitam sobre as informações transmitidas aos consumidores, para que possam, realmente, auxiliá-los.
É preciso que os agentes envolvidos nas cadeias de produção de alimentos enalteçam constantemente a importância do conhecimento da composiçao nutricional de um produto, dos seus ingredientes, da sua procedência, das suas características orgânicas, sempre com a permanente participação do consumidor, pois ninguém melhor do que ele para avaliar as condições de aceitabilidade dos alimentos, e para defender-se de eventuais alterações. Somente de posse dos conhecimentos e informações indispensáveis será possível ao comprador fazer escolhas conscientes e avaliar a qualidade dos alimentos comprados, segundo sua cultura, suas crenças, suas perspectivas e expectativas. Para tanto, os dois outros vértices do sistema, a indústria e o governo, deverão passar-lhe informações precisas, honestas, justas. Fiscalizada pelo governo, a indústria mantém um contrato de credibilidade com o consumidor, rompido o qual será praticamente impossível reatá-lo apenas com ações de marketing.
O consumidor espera da empresa basicamente uma atitude ética, pois por mais que se criem sistemas de controle, legislação eficiente e atualizada, normas e proibições, as falhas sempre ocorrerão, em decorrência de uma tecnologia em franca evolução e com características intrínsecas e humanas. Nesse contexto, deve-se ressaltar a cada instante o comportamento ético da empresa frente a episódios inusitados, que põem à mostra incorreções e falta de conformidades. Como repetia Anatole France, A ciência é infalível, mas os cientistas se enganam sempre.
Juliana T. Grazini dos Santos, abril de 2013.
Nutricionista, MS em ciências aplicadas à Pediatria, Doutora em Informação e Comunicação/Popularização Científica pela Universidade de Paris 7 (Denis Diderot), Presidente da Verakis – Mediação das Ciências dos Alimentos, da Alimentação e da Nutrição.
verakis@ hotmail.fr / www.verakis.com
José Cezar Panetta, Editor da Revista Higiene Alimentar,
Docente aposentado da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP,
Docente de pós-graduação da Universidade São Judas Tadeu, Pró-Alimento e Instituto Racine.
Revista Higiene Alimentar – Vol. 27 – nº 216/217 – janeiro/fevereiro de 2013
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