Neste 16 de outubro passado, Dia Mundial da Alimentação, instituído pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), transcorreram as comemorações de praxe ao redor do mundo, porém a temática proposta para este ano (O clima está mudando. A alimentação e a agricultura também devem mudar.) está causando sérias preocupações aos países, sejam eles produtores, exportadores, importadores ou deficitários de alimentos.
Aliás, destacando as mudanças necessárias diante dos impactos gerados pelas mudanças climáticas, a FAO alerta enfaticamente que um dos problemas relacionados com as alterações do clima é justamente a segurança alimentar. Fenômenos meteorológicos, cada vez mais extremos e frequentes, como aumento das temperaturas, desertificação de algumas regiões e alagamento de outras, vêm afetando sobremaneira a produção de alimentos, que precisará aumentar perto de 60% até 2050, para alimentar os cerca de 9 bilhões de habitantes que habitarão o planeta até essa data.
No último relatório divulgado pela Organização, denominado O Estado Mundial da Agricultura e Alimentação, é ressaltada a importância de medidas urgentes para adaptar a produção agrícola a essas alterações climáticas, sendo necessária muita pesquisa ainda para proporcionar variedades de alimentos mais resistentes e tolerantes à seca, enchentes, frio e calor extremos, bem como um amplo desenvolvimento da produção agropecuária com base na sustentabilidade e agroecologia.
O referido relatório aponta os possíveis efeitos das mudanças climáticas, caso não se tome nenhuma providência para reverter a situação. A redução da produção agrícola e consequente escassez e aumento dos preços dos alimentos afetará, principalmente, as regiões que já sofrem com a fome e a pobreza, além de trazer maior vulnerabilidade para os agricultores familiares que dependem da agricultura como meio de vida. Os dados de redução da produção são apresentados por região geográfica e por atividade (agropecuária, aquicultura e atividades florestais).
Estima ainda o número de pessoas vivendo em condições de extrema pobreza, em 2030, em função de diferentes situações climáticas e sócio-econômicas, uma vez que essa data foi determinada pelo Acordo de Paris como prazo para acabar com a fome no mundo. É necessário produzir mais alimentos, porém, é crucial que isto aconteça sem gerar maiores impactos ao meio ambiente. Portanto, adotar medidas que garantam a sustentabilidade da produção de alimentos e a preservação dos recursos naturais é o novo desafio para o setor, conforme conclusão do relatório da FAO.
No entanto, é necessário, também, uma alteração nos sistemas alimentares, haja vista que um terço de todo alimento produzido no mundo, é perdido ou desperdiçado. Afinal, mudanças para reduzir tais perdas, além de melhorar a eficiência do sistema, diminuirá ainda a pressão sobre os recursos naturais. No Brasil, quarto maior fornecedor de alimentos do mundo e responsável por atender 40% do aumento necessário na produção mundial de alimentos, o desperdício é uma triste realidade.
Estimativas do Programa das Nações Unidas para o meio ambiente (PNUMA), apontam que 10% da produção se perdem nas plantações, 50% na distribuição, transporte e abastecimento e 40% da comercialização até o consumo. Antes de buscar novas técnicas e tecnologias para aumento de produtividade é imprescindível que se trate deste mal, presente em todos os elos da cadeia agroalimentar. Nesse sentido, em iniciativa conjunta da FAO, Embrapa e WWF Brasil, foi lançada, em comemoração ao dia internacional da alimentação, a Campanha #SemDesperdício, com o intuito de apresentar aos consumidores as consequências negativas do desperdício de alimentos para o meio ambiente, o orçamento familiar e a segurança alimentar.
Segundo dados da EMBRAPA, as perdas no início da cadeia de alimento são mais comuns em países subdesenvolvidos, que lidam com baixo aporte tecnológico no manejo das lavouras, carência de estrutura para estocagem da produção e infraestrutura inadequada para escoamento das safras. Já em países de média e alta renda, a maior contribuição para o desperdício parte do consumidor. Porém, mesmo no contexto da classe média baixa, o desperdício pode ocorrer por fatores culturais, como o gosto pela abundância à mesa, compras excessivas, armazenamento inadequado do alimento ou mesmo desinteresse pelo consumo das sobras.
Na primeira etapa, as perdas derivam de colheita inapropriada, entre outras causas, como ataque de pragas, doenças e desastres naturais. Após a colheita, o produto que estraga rapidamente é geralmente manuseado de forma rudimentar, o que vai acarretar danos físicos e deteriorações fisiológicas e patológicas. Nas etapas após a colheita, as perdas são oriundas do uso de embalagens inadequadas, transporte impróprio, não uso de refrigeração, desconhecimento de técnicas de manuseio, disponibilização inadequada nas gôndolas e excesso de toque nos produtos pelos consumidores. As perdas pós-colheita podem ser classificadas como fisiológicas (ex.: amadurecimento), por injúria mecânica (ex.: armazenamento em caixas inadequadas) ou fitopatológicas (ex.: ataque por microrganismos).
A FAO alerta que é alarmante e injustificável a sangria nos recursos vitais do planeta e na economia das nações, constituindo-se em fator de desequilíbrio ecológico e social, uma das causas do aquecimento global e um importante obstáculo à resolução do problema da fome crônica que aflige 795 milhões de pessoas em todo o mundo, de acordo com a última edição do relatório anual Estado da insegurança alimentar em 2015, publicado pela FAO, Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (IFAD) e o Programa Alimentar Mundial (PAM). O número, apesar de alto, aponta 216 milhões de pessoas a menos do que o registrado entre 1990 e 1992. O estudo analisou 129 países, de 1990 a 2014 e mostrou que a maioria deles (72) atingiu a meta dos Objetivos de desenvolvimento do milênio (ODM), da ONU.
Por outro lado, o relatório da FAO sobre a questão da fome, deve ser avaliado, segundo Walter Belik, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP e ex-coordenador da Iniciativa América Latina e Caribe sem Fome (projeto da FAO/ONU), com extrema cautela. E explica: “O relatório é uma estimativa baseada em estatísticas. Por um lado, tem- -se médias de consumo teórico de alimentos, ou seja, uma pessoa precisaria de tantas calorias por dia para se alimentar; depois, esse volume de calorias é multiplicado pelo número de pessoas no país, levando em consideração um fator de correção utilizado para definir a distribuição de renda e, então, compara-se isso tudo com o dado sobre disponibilidade de alimentos no país, ou seja, a produção mais a importação menos a exportação.
Como é um dado teórico, muitas vezes as condições objetivas do país não estão presentes, por que isso está sujeito a uma série de variáveis, entre elas, o preço dos alimentos. Subindo o preço, ter-se á menos gente com capacidade para comprar aquele montante de calorias necessárias para sua sobrevivência. Por exemplo, quando os preços dos alimentos dispararam em 2008/2009, o número de pessoas consideradas com fome no mundo superou 1 milhão”. No mesmo eixo de raciocínio, Rodrigo Pinheiro de Toledo Vianna, doutor em saúde coletiva e professor do Departamento de Nutrição, da Universidade Federal da Paraiba (UFPB), analisa as quatro dimensões consideradas pela FAO (disponibilidade de alimentos, acesso, estabilidade da produção agrícola e utilização) e conclui: “Estas medidas não servem para discutir o problema da fome, porque as regiões do planeta têm características culturais e problemas políticos e econômicos diferentes. O problema se aproxima muito mais da desigual distribuição de riquezas no mundo e das relações de exploração que ainda existem entre os diferentes países”.
“Na prática, um dos caminhos para reduzir o número de pessoas que passam fome no Brasil é melhorar o abastecimento. É preciso fazer chegar o alimento à mesa das pessoas, trabalhando melhor a questão das perdas, dos derperdícios na cadeia de transporte. É preciso contar com centrais de abastecimento para conectar a produção local com o consumo das pessoas de pequenas e médias cidades. Urge viabilizar medidas para que o alimento chegue mais barato, para que as pessoas se alimentem melhor, para que os produtores locais sejam favorecidos, de forma a diminuir a distância que o alimento percorre, diminuir o número de intermediários e incentivar o consumo”, comenta Belik.
O importante para estes e outros especialistas, é que o enfrentamento da fome deve caminhar junto com a questão do desperdício de alimentos. “Na medida em que aumenta a renda do brasileiro, aumenta a quantidade de comida descartada. Na classe média o desperdício é muito alto, as pessoas comprar embalagens muito grandes, que não vão usar e se a fruta ou verdura está com um aspecto não muito bom, já descarta. Existe uma cultura de desperdício e isso precisaria ser combatido com a conscientização do consumidor. Falta, ainda, uma política mais consistente de incentivo aos bancos de alimentos, organizações que recolhem sobras em feiras e supermercados, para oferecer a pessoas que não têm acesso aos alimentos. Isto no Brasil é pouco desenvolvido, porque temos uma legislação muito ruim”, finaliza.
Já para Menezes, considerar o desperdício normal “faz parte da desigualdade, da ideia de que isso é um fenômeno natural e de que aqueles que tudo têm são merecedores desta situação de abundância, enquanto que a falta das condições básicas para uma vida digna é o resultado da preguiça, do despreparo, da inércia dos pobres. Essa cultura tem suas raízes no modelo escravista, cujos fundamentos encontram adesão até hoje. O combate ao desperdício pode ser uma via para colocar a questão da desigualdade em discussão e desnudar preconceitos. O desperdício é explícito, concreto e chocante, quando se confronta a abundância com a privação dos alimentos”, desabafa.
José Cezar Panetta, Editor, novembro 2015
jcpanetta@higienealimentar.com.br
Revista Higiene Alimentar – Vol.30 – nº 260/261 – Setembro/Outubro de 2016
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